sexta-feira, 19 de maio de 2006

A loucura do ganho

ROGÉRIO FERNANDES FERREIRA
Professor jubilado do ISEG/Gestão


Doravante, a empresa apenas tem uma finalidade, não a de ser rentável, o que é indispensável, mas a de aumentar a sua rendibilidade.

Lemos há dias um interessante livro (Viver Mais e Melhor, ed. Presença), pleno de ensinamentos, o que não se estranha dada a categoria e erudição dos seus autores (Joel de Rosnay, Jean-Louis Servan-Schreiber, François de Closets e Dominique Simonnet).

Entre outras reflexões de valia os autores acentuam também que: "Infelizmente, o capitalismo industrial foi substituído por um capitalismo puramente financeiro. Nesta passagem, o trabalhador desapareceu da paisagem. Doravante, a empresa apenas tem uma finalidade, não a de ser rentável, o que é indispensável, mas a de aumentar a sua rendibilidade: 10% todos os anos. O empregado já não é mais do que um meio, entre outros, para atingir este objectivo. Um meio que se adapta, que se desloca, que se elimina em função desta corrida ao lucro. Como poderia o trabalho conservar o mínimo sentido numa economia desumanizada até este ponto? Simultaneamente assistiu-se, em todo o lado, pelo mundo fora, aos patrões a concederem a si próprios vencimentos que raiam o escândalo. Isto provoca o desagrado do pessoal e acaba por desmobilizar até os quadros superiores. Para quê trabalhar então como um animal com a única finalidade de os 'managers' fazerem fortuna ao fim de alguns anos? O capitalismo financeiro desvalorizou de tal maneira o trabalho que fez dele um anti valor, um objecto de rejeição."

Em Portugal algo se passa de semelhante. Grandes grupos empresariais de sectores financeiros disponibilizam, para os membros dos seus conselhos de administração, aliás bastantes membros, remunerações e benesses que, em média anual, se noticia rondarem 3,5 milhões de euros (700 mil contos) por administrador. Custa a acreditar que estas práticas se verifiquem, pois estão em inteira discordância com a situação económica geral. Muitas das nossas empresas de média ou pequena dimensão vivem em extrema dificuldade, fortemente endividadas, em crescente redução de actividade, com perdas de postos de trabalho e prejuízos a acumularem-se.

Assim, pagar-se, na situação actual, remunerações da ordem de grandeza referida, em país tão pobre como o nosso, em que o salário mínimo anda por cerca de 700 vezes menos, revela extrema insensibilidade, parece raiar a insensatez. Ironicamente, anota-se que os referidos administradores estão a ganhar mais do que muitos dos melhores treinadores e jogadores do futebol mundial.

Convenhamos que num país com as altas taxas de desemprego e com as crises estruturais de vasto espectro com que se depara, as referidas remunerações constituem verdadeira afronta à comunidade. Agravam-se desse modo as já numerosas questões estruturais existentes, a excessiva despesa pública e inerentes défices orçamentais, a tributação distorcida, a pobreza de muitos, as poucas actividades produtivas que restam, o alto consumismo e endividamento, etc.

Em meses passados falou-se das reformas milionárias que afamados homens públicos vinham recebendo, em acumulação com outras reformas ou com remunerações de outros seus cargos. Em muitas reformas não ocorreram as inerentes contribuições sociais. Em anos anteriores falou-se de outros escândalos, de apresentação de documentos respeitantes a deslocações não efectuadas ("viagens fantasmas").

Ultimamente, veio a assinalar-se que pessoas com cargos de responsabilidade picavam o ponto indevidamente, ausentando-se de seguida.

Sempre houve e sempre há pelo mundo fora situações chocantes, causadoras de indignação a quem gostaria de um Mundo melhor, com mínimos de equidade e de conduta ética. Nos últimos trinta anos muitos de nós empenharam-se em reivindicar e alcançar proventos, regalias e benesses em excesso. Pede-se-lhes que transijam.

Encontraram-se actuações pouco ortodoxas. Fala-se, de há muito, em matar o "monstro" que, de uns modos ou de outros, quase todos alimentámos.

As pessoas de maior responsabilidade social têm de ser exemplares na urgentíssima repartição dos sacrifícios necessários. Está difícil

in DIÁRIO ECONÓMICO de 18/05/06

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