segunda-feira, 19 de maio de 2008

Dez anos do euro

por Ilda Figueiredo


Portugal é um triste exemplo da prioridade dada às políticas monetaristas, ao cumprimento dos irracionais critérios do Pacto de Estabilidade, às orientações do Banco Central Europeu.
Este mês assinalaram-se os dez anos do euro, embora tenha sido um debate de fraco entusiasmo, apesar do optimismo do comissário Almunia no seu discurso no Parlamento Europeu. O mínimo que se pode dizer é que é impressionante continuar a ouvir a Comissão e os principais responsáveis da União Europeia a falar dos êxitos da Zona Euro, mesmo quando as próprias estatísticas demonstram o contrário, seja em termos de crescimento económico, seja de qualidade de vida das populações. Claro que os êxitos a que se referem são os aumentos dos lucros e os fabulosos ganhos que os grupos económicos e financeiros conseguiram durante estes primeiros dez anos da União Económica e Monetária.
Mas é inadmissível que, sistematicamente, esqueçam o agravamento das desigualdades sociais, o aumento do trabalho precário e mal pago, que atira cada vez mais milhões de trabalhadores para situações de pobreza, agravando a sua exploração e impedindo que tenham condições para garantir aos seus filhos uma vida digna.
Por isso, não espanta que o plano que a Comissão Europeia apresenta seja mais do mesmo: mais vigilância económica para garantir maior competitividade e estabilidade financeira aos grupos económicos, maior supervisão orçamental para pressionar à liberalização de serviços públicos e maior pressão e fiscalização para impedir aumentos de salários.
Ora, não se pode aceitar que a questão do controlo dos salários seja sempre a medida primeira que defendem, esquecendo que estes representam cada vez menor percentagem nos custos das empresas e do próprio rendimento nacional.
Portugal é um triste exemplo da prioridade dada às políticas monetaristas, ao cumprimento dos irracionais critérios do Pacto de Estabilidade, às orientações do Banco Central Europeu. É o agravamento do desemprego, a crescente precariedade das relações laborais e a degradação progressiva das condições de vida e de trabalho, com uma diminuição sucessiva dos salários reais, particularmente na função pública, a privatização e o encerramento de serviços públicos essenciais, o ataque à saúde pública e à educação.
Esta situação agravou-se após 2002, coincidindo com a entrada em circulação do euro. A verdade é que a estrutura económica portuguesa era demasiado frágil para suportar a aplicação uniforme de medidas monetaristas, que interessam aos países mais ricos e poderosos, e não têm em conta as debilidades económicas e sociais de outros. Ao deixar de poder utilizar a desvalorização do escudo para promover as exportações, ou a baixa das taxas de juro para acelerar investimentos, Portugal perdeu mecanismos de intervenção que agravaram a situação económica e social.
A obsessão do cumprimento do Pacto de Estabilidade, mesmo com a introdução posterior de alguma flexibilidade, serviu aos sucessivos governos portugueses de pretexto para intensificar políticas neoliberais, para o corte cego de investimentos públicos, o congelamento e perda do poder de compra dos salários, a manutenção de pensões de miséria, a redução de outras prestações sociais, e dificultou a própria utilização dos fundos comunitários, como aconteceu na agricultura. Contribuiu, igualmente, para a diminuição do PIB. Até a sua lenta recuperação está já ameaçada e Portugal continua a divergir da média comunitária, sem alteração à vista, se não houver uma ruptura com estas políticas.
O que estamos a viver é o resultado da insistência nestas políticas monetaristas, a que se vieram juntar as propostas da chamada Estratégia de Lisboa, com as liberalizações, designadamente nos serviços financeiros e áreas conexas, na energia, em certas áreas dos transportes, serviços postais e serviços em geral.
Há, entretanto, uma crescente pressão para novas regras da concorrência a cada vez mais serviços e concursos públicos, a harmonização de certos aspectos da tributação e também a pressão sobre as pensões e reformas e a saúde, visando a privatização de alguns serviços mais lucrativos, a que se junta a pressão para liberalizar os despedimentos sem justa causa, através da proposta de novas alterações do código laboral, ou seja, a aplicação da "flexigurança" à portuguesa.
Por isso, continuamos a defender uma ruptura com estas políticas monetaristas, a substituição do Pacto de Estabilidade por um verdadeiro Pacto de Progresso e Desenvolvimento Social, a aposta no investimento público e em serviços públicos de qualidade, a prioridade ao emprego com direitos, à produção e a medidas que dignifiquem quem trabalha, além do combate aos estatutos e orientações do BCE.
Mas, também por isso, teremos a intensificação de lutas pela defesa das conquistas de Abril, dos direitos dos trabalhadores, das condições de vida das populações, contra estas políticas neoliberais, de que é exemplo a manifestação nacional convocada pela CGTP, para o próximo dia 5 de Junho.

Deputada do PCP no PE


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    domingo, 18 de maio de 2008

    A crise dos cereais

    Um dos grandes temas da actualidade é o da crise alimentar. O momento que se vive é de facto preocupante. Cerca de dois mil e quinhentos milhões de pessoas sobrevivem com menos de dois dólares por dia.

    Estes seres humanos e muitos outros dependem de pequenas rações diárias de arroz ou de trigo. Ainda que não tenham acesso aos grandes meios de comunicação social onde se produz o elevado e preocupado debate sobre as causas e as consequências da situação, sabem bem o que ela significa. Sentem-na na barriga, todos os dias.

    A especulação como motor dos aumentos de preços

    Os preços dos cereais estão em alta, com acréscimos da ordem dos 50% (no caso do trigo mole) a 80% (no caso das rações animais e comparando com o preço de há um ano atrás). Atrás deles vem o aumento do preço da carne, do leite, das massas alimentícias, etc. Isto tem a ver com o aumento da procura, com as condições climatéricas e as suas alterações que condicionam a produção agrícola, ou ainda com a opção política de produzir combustíveis a partir de cereais, desviando produções que deveriam servir para alimentar as populações, para fazer andar a frota automóvel. Mas fundamentalmente decorre da especulação com os preços do petróleo, e nos “mercados de futuros” de cereais.

    Ou seja, o preço dos cereais é determinado, não pelos sacrossantos mecanismos de mercado, mas pelas trocas realizadas na Bolsa de Chicago, onde o que se está a vender hoje, são os cereais que se irão produzir dentro de três ou quatro anos.
    É óbvio que vender e comprar sobre um bem tão incerto como os cereais, cuja produção está condicionada por factores que o homem não controla, abre espaço a todas as especulações. Para os senhores da grande finança internacional gerarem meios para mais especulação, vale tudo.


    Os infindáveis lucros da grande agro-indústria


    Neste quadro quem ganha? Ganham as grandes empresas da agro-indústria que dominam os meandros das negociações de Doha, da OMC, da União Europeia. Ganha, por exemplo, a multinacional Monsanto, uma das maiores corporações agro-alimentares do mundo, cujos administradores provêm directamente da Casa Branca ou para lá transitam em comissões de serviço, que quer impor os seus produtos, as suas sementes, os seus pesticidas e os seus métodos aos povos do mundo.
    A Monsanto, principal fornecedora mundial de Organismos Geneticamente Modificados, os famosos transgénicos, detém mais de 40% da área cultivada de milho, só no Brasil.

    Só no último trimestre de 2007, a Monsanto teve lucros líquidos na ordem dos 256 milhões de dólares, triplicando o seu resultado anterior.


    A destruição da agricultura nacional

    Não é possível esquecer quais as condições em que Portugal enfrenta esta crise. Portugal foi um país com uma significativa produção. Com a Reforma Agrária, nos campos do Alentejo abriu-se o caminho que garantia o trabalho, desenvolvia a produção de cereais e permitia a fixação da população. Nas terras da Beira e em Trás-os-Montes a produção familiar de aveia e outros cereais contribuía para a alimentação própria e dos gados da casa. O milho cresceu sempre nos campos do Minho e da Beira Litoral. O arroz teve fartas produções no Baixo Mondego, no Sorraia e no Litoral Alentejano.
    Mas as políticas agrícolas da União Europeia e a subserviência dos Governos nacionais levaram à destruição da agricultura nacional e ao abandono dos campos. Só nos últimos 20 anos desapareceram 250 mil explorações agrícolas.
    Aumento dos custos de produção, liberalização dos mercados, subsídios para não produzir, distribuição desigual dos apoios públicos que caiem nas mãos dos grandes agrários, encerramento de serviços, entrega dos silos de recolha dos cereais aos interesses privados, são algumas das razões desta situação.
    Assim, estamos hoje dependentes em cerca de 60% das importações de produtos alimentares.

    O capitalismo em causa

    Pequenos agricultores, pequenos proprietários e rendeiros, assistem espantados a esta procissão de notícias sobre a alta dos preços. Apesar dela, apesar de trabalharem de sol a sol, sejam os anos agrícolas bons ou maus, veem o valor dos seus produtos diminuir de ano para ano. Não são os agricultores os beneficiários destas políticas. Hoje vendem o milho ao mesmo preço que vendiam há 30 anos. Vendem os bezerros com 15 dias a menos de metade do valor de há 10 anos.
    O que esta crise alimentar põe a nu é a natureza preadora do capitalismo. Na ânsia de procurar sempre maiores lucros, o capital dirige as suas atenções para novos mercados, novos produtos. Ainda que isso ponha em causa a vida de milhões de seres humanos.
    De um lado estão as grandes multinacionais, o capital que suga as riquezas naturais e explora os povos de todo o mundo. Do outro lado da injustiça estão os pequenos produtores. Os que, face aos aumentos dos custos dos factores de produção, por um lado, e do esmagamento dos preços pagos pelos intermediários, por outro, se vêm a braços com a baixa acentuada dos rendimentos. E estão os que dependem dos cereais para sobreviver.

    O caminho é o da luta pela soberania alimentar e pelo desenvolvimento da agricultura nacional, pela alteração do uso e posse da terra, pela valorização da agricultura familiar, por um ruptura com as actuais políticas agrícolas.

    O caminho é o da luta pela superação do capitalismo.

    João Frazão
    www.avante.pt


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    sábado, 12 de abril de 2008

    Abril foi uma Revolução libertadora

    Intervenção de Álvaro Cunhal
    No colóquio «25 de Abril, ontem, hoje e amanhã»
    19 de Abril de 1994


    Realiza-se este colóquio, aberto naturalmente ao debate, no quadro das iniciativas promovidas pelo Partido Comunista Português em comemoração do 20º aniversário da revolução de Abril.

    Comemoração significa, não apenas memória e lembrança, mas apreciação positiva do valor. A apreciação do nosso Partido fundamenta-se no conhecimento directo e na análise objectiva das situações e dos factos, na acção e na luta desenvolvida antes, durante e depois de Abril, no escrupuloso respeito pela verdade e nos objectivos e ideais que inspiraram e inspiram o nosso Partido ao longo dos 73 anos da sua existência e da sua luta.

    Duas palavras muito gerais e apenas introdutórias: a revolução de Abril foi uma revolução libertadora, com tão profunda transformação na vida nacional que se pode considerar um dos mais altos momentos da vida e da história do povo português e de Portugal.

    É nossa tarefa, e pensamos ser também tarefa de todos os democratas, combater firmemente a gigantesca campanha de falsificação da história actualmente em curso, informar e esclarecer o que foi a revolução, o que foi e o que é a política de destruição das suas conquistas e o que representam os valores de Abril para o futuro democrático e independente de Portugal.


    25 de Abril

    revolução libertadora


    A revolução de Abril libertou Portugal de quase meio século de ditadura. Ditadura militar de 1926 a 1933. Depois com Salazar ditadura fascista. Suprimidas as liberdades mais elementares. Censura à imprensa. Reprimida violentamente qualquer oposição. Copiada quase literalmente do fascismo italiano a orgânica corporativa. Polícia política (PIDE/DGS) para perseguir, prender, torturar, assassinar com torturas ou a tiro. Tribunais especiais condenando a mando da PIDE. Democratas mantidos com condenação ou sem ela longos anos nas prisões, atingindo em alguns casos mais de 20 anos. Partido único fascista (União Nacional/Acção Nacional Popular). Milícia fascista (Legião). Organização fascista e paramilitar da juventude (Mocidade Portuguesa).
    Salazar e depois Marcelo Caetano nunca ocultaram a sua ideologia fascista. Salazar gabava o génio político de Mussolini com cujo retrato na própria secretária se fazia fotografar. Mandava os seus Ministros, os seus militares, os seus polícias aprender na Itália fascista e na Alemanha fascista. Apoiou e ajudou o golpe fascista de Franco em Espanha. Apoiou e ajudou Hitler e Mussolini na guerra. Se em algumas conjunturas (derrota do fascismo na 2ª Guerra Mundial e crise geral da ditadura) foram lançadas manobras pseudodemocráticas, o objectivo não era abrir caminho à democracia, mas iludir o povo, dar uma válvula de escape ao descontentamento e revolta popular e depois voltar às mesmas formas de repressão.

    O Governo de Marcelo Caetano foi formado já em pleno período da crise geral da ditadura fascista.

    O processo de formação e domínio dos grandes grupos monopolistas, provocou a rápida redução da base de apoio social do fascismo.
    A guerra colonial condenada à derrota provocava a oposição do povo, particularmente da juventude, e acentuava a convergência da luta do povo português contra o fascismo e dos povos das colónias portuguesas contra o colonialismo atacando a ditadura em Portugal e em África.
    A luta popular em todas as frentes (movimento operário, movimento democrático, movimento dos estudantes, luta dos intelectuais, luta contra a guerra colonial incluindo nas forças armadas) atingiu um rápido ascenso e radicalização.
    Todos estes factores abalaram profundamente as esferas do poder, sucedendo-se no campo fascista as divisões e dissidências (Craveiro Lopes, Botelho Moniz, Humberto Delgado, Henrique Galvão, Sá Carneiro e outros).
    Sentindo a crescente ameaça sobre a ditadura e temendo a explosão revolucionária, Marcelo Caetano vacilava entre concessões de "liberalização" do regime sem alterar a sua natureza ditatorial e a continuação do recurso à repressão fascista tal como antes. Orientou-se neste segundo sentido. A verdade é que nenhuma solução do regime e da guerra colonial era já possível a partir do governo fascista. A crise geral da ditadura evoluiu para uma situação revolucionária na qual o derrubamento da ditadura pela força se pôs na ordem do dia.

    Esse dia chegou em 25 de Abril.

    Durante 48 anos, o PCP e outros democratas, os trabalhadores, o povo português tiveram como elemento central da sua luta a resistência antifascista e a luta pela liberdade. A luta antifascista foi o eixo central da luta política e o cimento da unidade democrática. A definição da ditadura como ditadura fascista, a luta popular e democrática como luta antifascista, as organizações, como organizações antifascistas estão gravadas na memória e na vida nacional durante quase meio século, não apenas pelas palavras ditas e escritas, mas pela história de 48 anos de perseguições, de prisões, de torturas, de condenações, de assassinatos e de luta heróica do nosso povo.
    Na grande operação de branqueamento da ditadura não é a utilização de especulações teóricas elaboradas em gabinetes que pode alterar a sua justa definição como ditadura fascista. Assim foi considerada pelo povo. Assim ficará na história.

    O Povo-MFA

    e a questão do poder


    Quando falamos do 25 de Abril falamos muito justamente do dia 25 de Abril de 1974. É uma data. Uma data memorável. O dia em que os capitães do MFA empreenderam o heróico levantamento militar que derrubou o governo fascista. O MFA, apesar das suas contradições, tornou-se desde esse momento uma força fundamental para a configuração, instauração e institucionalização do novo regime democrático.
    A revolução de Abril não foi porém apenas esse acto heróico e decisivo. A revolução de Abril não foi apenas um acto. Foi um processo. Ao levantamento militar sucedeu no imediato o levantamento popular que não se limitou a apoiar os militares, mas, com a sua intervenção própria e autónoma, passou a ser, a par da componente militar, uma força motora e um elemento determinante da revolução democrática.
    A aliança Povo-MFA constituiu uma realidade objectiva resultante da conjugação dos levantamentos militar e popular, da estreita e fraterna ligação que rapidamente se estabeleceu entre o povo e os militares, na acção, na vida, na intervenção irresistível para pôr termo ao fascismo e para exercendo a liberdade, avançar no caminho da democracia.
    A liberdade e a democracia não foram concedidas nem oferecidas. Foram conquistadas pela dinâmica conjugada da luta das massas e dos elementos progressistas do MFA. A democratização da vida nacional até à institucionalização jurídica do novo regime democrático assentou na legitimidade revolucionária. Foram igualmente legítimas a acção revolucionária do MFA e a intervenção revolucionária das massas populares. A questão do poder político colocou-se inevitavelmente no quadro desta preponderante dinâmica.

    Trata-se de uma das questões mais originais e complexas da revolução de Abril. Porque, derrubado o governo fascista e a ditadura fascista, não houve nenhuma força que, com o seu programa próprio e a sua força própria, tenha assumido o poder. Não houve tão pouco um movimento unitário de forças que o tenha feito. Desde a primeira hora, nos órgãos superiores militares e civis de carácter provisório logo a seguir instaurados, revelaram-se profundas divergências quanto a objectivos fundamentais da revolução antifascista incluindo objectivos imediatos. Desde a primeira hora, tanto na Junta de Salvação Nacional e no MFA como no I Governo Provisório, manifestaram-se contradições e conflitos acerca das decisões a tomar ou seja acerca da democracia a instaurar e acerca do exercício do poder e a quem cabia esse exercício.
    À Junta de Salvação Nacional constituída no imediato como supremo órgão de soberania foram chamados alguns generais reaccionários. No I Governo Provisório, a par de representantes dos partidos democráticos, nomeadamente PCP, PS e MDP, entraram Sá Carneiro e outros dirigentes da ala liberalizante da ditadura que acabava de ser derrubada. No MFA, a par dos "capitães" progressistas (eles próprios sem uma identidade política comum) tinham força não desprezável elementos que iam desde uma afirmada direita a um esquerdismo anarquizante.
    Desta situação resultaram inevitavelmente a criação e a multiplicação de centros de decisão, a agudização dos conflitos, o carácter determinante da correlação de forças a nível militar e popular e a irregularidade do processo de criação, instauração e institucionalização do novo regime democrático.
    Neste contexto, ultrapassando as hesitações dos contraditórios órgãos do poder, as forças motoras da revolução - a componente militar e a componente popular - determinaram as conquistas democráticas e a natureza, o âmbito e as características da futura democracia portuguesa.


    As conquistas democráticas e o novo regime


    O curso da democratização da sociedade portuguesa tem de entender-se no contexto de uma verdadeira revolução popular e militar inteiramente justificada e legítima e não como alguns pretendiam por decisão de um qualquer governo de transição de duvidosa legitimidade, com um programa de liberalização da ditadura fascista mantendo o poder económico dos monopólios e latifundiários. O PCP havia definido no seu Programa aprovado no VI Congresso (1965) os objectivos fundamentais da revolução antifascista: a instauração de um regime democrático, a liquidação do poder dos monopólios e a promoção do desenvolvimento económico, a reforma agrária na zona do latifúndio, a elevação do nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral, a democratização da instrução e da cultura, a libertação de Portugal do imperialismo, o reconhecimento dos povos das colónias do direito à imediata independência e uma política de paz e amizade com todos os povos.
    Se as mais notáveis conquistas da revolução democrática concretizaram muitos desses objectivos, não foi por qualquer imposição do PCP mas porque eles correspondiam a uma necessidade imperativa para pôr fim ao poder político e económico da ditadura, a medidas essenciais de democratização, de desenvolvimento e de melhoria das condições de vida do povo, a aspirações profundas do povo português, embora nem sempre presentes na consciência política.
    A própria dinâmica de massas foi em si mesma uma expressão de democracia participativa cujas formas e experiências vieram a ser institucionalizadas como elementos constitutivos da nova democracia política. Foi uma contribuição decisiva para o reconhecimento de um quadro de direitos e liberdades dos cidadãos, de uma democracia política avançada, de um poder local democrático descentralizado e ligado ao povo.

    Numa situação em que se decidia da vitória ou da derrota da democracia, as massas populares em movimento, com destacado papel da classe operária, deram uma brilhante demonstração da sua criatividade e da sua capacidade de intervir para assegurar a normal actividade económica e dotar o país de novas estruturas depois institucionalizadas. O controle operário ou controle de gestão em centenas de empresas, sistemas autogestionários, cooperativas, UCPs.

    Qualquer estudioso que com objectividade analise o processo da revolução de Abril terá de concluir que a profundidade das transformações, reformas e conquistas democráticas da revolução foi acelerada pela activa resistência das forças do passado fascista e pelas tentativas sucessivas de imporem um novo poder ditatorial e impedirem o curso da democratização da vida nacional. O grande capital e as forças fascistas e reaccionárias, incapazes de conterem a dinâmica revolucionária que se revelava irresistível, procuraram logo após o 25 de Abril por um lado, preparar e lançar golpes contra-revolucionários e por outro lado estrangular economicamente a democracia nascente. Transferiram capitais para o estrangeiro. Descapitalizaram empresas. Anularam encomendas. Lançaram fogo às searas. Levaram milhares de cabeças de gado para Espanha. Foram os trabalhadores, foi o povo que nessa situação asseguraram a gestão em centenas de empresas e as actividades económicas do país.

    As grandes conquistas democráticas no que respeita às estruturas socioeconómicas (nomeadamente as nacionalizações e a reforma agrária) não só correspondiam à criação de uma nova base do desenvolvimento como à necessidade de medidas de defesa da economia e das liberdades alcançadas.
    A guerra implacável e criminosa conduzida contra estas grandes conquistas democráticas e que levou à sua liquidação não destrói nem a sua validade nem os resultados então alcançados numa situação tão complexa como a da efectiva transformação revolucionária de elementos basilares do sistema socioeconómico.
    A revolução de Abril confirmou na vida que as quatro vertentes da democracia (a política, a económica, a social e a cultural) são inseparáveis como vieram a ser inseparáveis essas quatro vertentes nas ofensivas antidemocráticas do processo contra-revolucionário.
    Inseparáveis de uma democracia política avançada e das reformas das estruturas socioeconómicas, a revolução significou novos princípios, reformas e medidas nos campos social e cultural. Novos direitos dos trabalhadores, das mulheres, da juventude, dos reformados, dos deficientes, soluções progressistas nos domínios da saúde e do ensino, abertura à criatividade e fruição culturais. Entre os grandes feitos da revolução de Abril conta-se o fim da guerra colonial e o reconhecimento aos povos das colónias do direito à imediata independência. Na história de Portugal ficará para sempre inscrito a letras de ouro esse momento em que, depois de séculos de exploração e opressão colonialista pelo Estado português, o povo português, em luta contra a ditadura fascista, e os povos das colónias portuguesas em luta contra a opressão colonial, depois de muitos anos de uma guerra injusta, se encontraram mutuamente solidários na conquista da liberdade e na conquista da independência.
    Todas as conquistas revolucionárias foram reconhecidas pela Assembleia Constituinte resultante do sufrágio universal como elementos constitutivos do novo regime democrático. Assim figuram na Constituição aprovada em 1976. Quem a aprovou não foram apenas os deputados do PCP. Foram também, os votos dos deputados do PS e do PPD.

    É de lembrar que o carácter anticapitalista da democracia a instaurar, as nacionalizações e a reforma agrária, assim como uma sociedade socialista em Portugal, não eram objectivos inscritos apenas no Programa do PCP. O PS com Mário Soares inscreveu-os também na sua Declaração de Princípios aprovada no Congresso realizado em Dezembro de 1974. E o PPD com Soares Carneiro inscreveu-os no seu Programa aprovado no Congresso Nacional realizado em Novembro do mesmo ano.

    Desde a primeira hora

    resistência à revolução democrática


    Os órgãos provisórios do poder político tiveram à partida uma composição unitária. Tendo consciência das contradições e das divergências existentes, a orientação do PCP desde a primeira hora foi tentar a concretização da aliança Povo-MFA, a unidade dos trabalhadores e das massas populares em movimento e um caminho comum de todos os democratas de forma a fazer avançar a democratização da vida nacional.
    Houve porém um factor, também desde as primeiras horas, que contrariou uma tal possibilidade, perturbou profundamente o curso da instauração do novo regime democrático e conduziu a uma rápida radicalização de posições, a uma aceleração da desestabilização militar, política e social e a rupturas irreparáveis no próprio campo inicial do 25 de Abril. Esse factor foram as tentativas da direita reaccionária, logo após o dia 25 de Abril para tomar ditatorialmente conta do poder e impedir a democratização da vida nacional que desde logo se revelou impetuosa e irresistível.
    É de lembrar que, derrubado o governo fascista e formada a Junta de Salvação Nacional, o Presidente designado, general Spínola, pretendeu impôr a aplicação do ponto do programa do MFA, ultrapassado pela realidade, de que só seriam permitidas "associações políticas" que viessem a ser "embriões de futuros partidos", querendo assim impedir a imediata legalização dos partidos políticos, alcançada de facto no próprio dia 25 pela acção das massas populares apoiadas por elementos progressistas do MFA.

    É de lembrar que Spínola procurou manter a PIDE/DGS em funções vindo declarar logo no dia 26 que tinha "chamado a atenção da DGS" e que estava seguro de que a DGS "passará a agir de forma a que não mereça mais quaisquer reparos do povo português" (as palavras são dele)! É de lembrar que chegou a nomear um pide para novo director da PIDE. É de lembrar que pretendia, não proceder à imediata libertação dos presos políticos, mas à sua filtragem com critérios que é de presumir quais seriam mantendo a PIDE em funções.

    Foi o povo, apoiado em elementos progressistas no MFA, que conquistou no imediato a liberdade dos cidadãos e dos partidos, que assaltou as sedes da PIDE e extinguiu essa corporação de criminosos, que cercou as prisões e libertou os presos. Ainda actualmente as forças reaccionárias insistem em falar em tentativas do PCP para tomar conta do poder e instaurar uma nova ditadura. Trata-se de sinistras falsidades. Houve de facto, desde os primeiros dias após o dia 25 de Abril e depois ainda em 1974 e 1975, tentativas de ruptura da composição unitária dos órgãos provisórios do poder e de tomada do poder. Tais tentativas não foram do PCP, mas dos elementos reaccionários que participavam nos órgãos do poder militar e político provisório. Foram tentativas e golpes não para assegurar, mas para impedir a transformação democrática da sociedade portuguesa. Foram tentativas e golpes não para assegurar no imediato os direitos dos cidadãos e a vida democrática em curso mas para travar a conquista imediata das liberdades democráticas e impôr no imediato novas formas de poder ditatorial.

    O que os elementos reaccionários na JSN e no Governo não podiam suportar era que a classe operária, os trabalhadores e o povo tivessem uma palavra a dizer e que estivessem a dizê-la, que aparecessem com a pujança logo bem demonstrada nas gigantescas manifestações do 1º de Maio, nomeadamente no comício de Lisboa, e que o PCP se revelasse à luz do dia como um forte partido nacional, o grande partido da resistência antifascista e da luta pela liberdade e a democracia ao longo de dezenas de anos de terror, um partido ligado às massas e participando no Governo.
    O general Spínola foi a partir desse momento a figura central, o instigador e propulsor da conspiração contra-revolucionária, de tentativas de golpes de palácio, de pronunciamentos e golpes militares, de redes e atentados bombistas. Honra lhe seja feita. O general declarava os seus objectivos, conspirou e arriscou, ao contrário de outros que, comprometidos com ele, até hoje ocultaram as suas responsabilidades.

    Golpes contra-revolucionários


    Poucos dias depois da formação do I Governo Provisório, Spínola tentou nos bastidores um primeiro golpe contra-revolucionário, o chamado "golpe Palma Carlos".
    No dia 13 de Julho numa reunião realizada na Manutenção Militar acusa a Comissão Coordenadora do MFA de querer instaurar uma ditadura de "tipo socialista" e reclama plenos poderes. Convidado a participar nessa reunião, Sá Carneiro, então Ministro, ataca o movimento operário e a aliança Povo-MFA, exige segurança para os capitalistas e defende a proposta de plenos poderes a Spínola incluindo o de declarar o estado de sítio. A tentativa de golpe concretiza-se poucos dias depois. O golpe falhou e foi formado o II Governo Provisório tendo como Primeiro Ministro Vasco Gonçalves.
    Dois meses depois, em 28 de Setembro, Spínola tenta novo golpe que ficou conhecido pelo da "maioria silenciosa". Intensa preparação. Apoio declarado de Sá Carneiro e do PPD, de Galvão de Melo, membro da JSN, de outros militares e de numerosos partidos fascistas e fascizantes criados após o 25 de Abril. Um milhão de cartazes. Provocações e desordens. Os grupos monopolistas do tempo do fascismo (MDEs) prometem 120 milhões de contos e 100 mil novos postos de trabalho se o golpe triunfasse. Tentativa de golpe colonialista em Moçambique. Motim dos pides presos na Penitenciária. Grosseira provocação ao Primeiro Ministro na Praça do Campo Pequeno. Mobilização das forças de direita a nível nacional para uma gigantesca concentração em Lisboa, que concluiria pela tomada de plenos poderes por Spínola para "salvar a Pátria". Nas vésperas do anunciado golpe, Spínola convoca o Conselho de Ministros para Belém e faz o seu ultimato.

    Numa grandiosa mobilização, as massas populares, com o PCP, com o movimento sindical, com outras formações civis progressistas, cortaram estradas, impediram o acesso à capital, impediram a manifestação e derrotaram o golpe. Spínola e outros três membros da Junta foram demitidos e o governo saiu reforçado.
    O golpe militar de 11 de Março de 1975, também preparado com uma intensa acção política, conspiração militar e provocações falhou igualmente. O bombardeamento e cerco do RAL.1 por pára-quedistas terminou com o povo a rodear, a dissuadir e a convencer os soldados e o comandante da unidade a negar a rendição. Spínola fugiu para Tancos, de Tancos para Espanha e de Espanha para o Brasil, onde continuou a conspirar.
    Derrotadas todas essas tentativas, um novo passo foi dado na escalada: o terrorismo bombista. Desencadeado pela organização terrorista MDLP e incitado tanto por fascistas declarados como pelo CDS, o PPD e o PS desempenhou importante papel na acção contra-revolucionária. Declarações recentes de operacionais do terrorismo (Alpoim Calvão, Monteiro, R. Moreira e um ex-inspector da PIDE) confirmaram a chefia de Spínola e começaram a levantar o véu de compromissos e cumplicidades que até hoje não foram confessadas.

    O terrorismo bombista conjugado com conspirações militares, o anticomunismo do PPD e do PS, espectaculares provocações e um trabalho sistemático de intriga e divisão do campo democrático, deveria conduzir a um novo golpe visando a liquidação do MFA, o isolamento e repressão do PCP e à interrupção do processo de democratização do país.

    Sucessivas divisões, confrontos, golpes internos, alterações hierárquicas, rupturas, sublevações dividiram e enfraqueceram progressivamente o MFA. Enquanto os chamados "moderados" (Grupo dos Nove) apoiados pelo PS e PPD se aliaram à direita militar, a Esquerda militar sofria pressões e influências do esquerdismo aventurista.
    A aliança do PS com a direita e as divisões e conflitos nas forças armadas foram decisivas para o êxito do golpe de 25 de Novembro.
    Do golpe resultou a liquidação do MFA, a perda da componente militar da revolução e uma nova correlação de forças que criou condições para a formação de governos com uma política contra-revolucionária.

    Se logo a seguir ao 25 de Novembro os militares mais reaccionários não levaram por diante a sua intenção de ilegalizar o PCP, o movimento sindical e outras forças progressistas foi porque o PCP tinha procurado tenazmente uma solução política para a crise politico-militar e porque os militares "moderados", que desempenharam no golpe um papel decisivo, compreenderam que, se isso sucedesse, se seguiria também a sua liquidação política e a instauração de uma nova ditadura.
    Isto explica o facto à primeira vista surpreendente de, após o 25 de Novembro, o PCP continuar no governo e até com maior número de membros.
    De lembrar que, sempre que falharam as tentativas de tomar conta do poder a reacção inventava que o PCP é que tentara um golpe.
    Falhou o golpe do 28 de Setembro? Logo lhe chamaram uma "inventona" ou "intentona" do PCP. Falhou e foi derrotado o golpe militar do 11 de Março? O PPD, que apoiara a tentativa de golpe, logo afirmou no seu jornal "Povo Livre" (3.12.75) que o 11 de Março fora "uma inventona fomentada por oficiais e forças ligadas ao PCP". Na mesma linha, Spínola diria ainda um ano mais tarde ("O Diabo", 12.8.76) que o 11 de Março fora "uma hábil manobra montada pelo PC em combinação com os serviços secretos de certos países estrangeiros". E agora aparece quem venha afirmar que também o 25 de Novembro foi um golpe do PCP. Chama-se a isto fazer o mal e a caramunha.

    O caminho da destruição

    das conquistas de Abril


    O 25 de Novembro de 1975 criou condições para o avanço e a aceleração dos planos contra-revolucionários.

    A reacção concentrou então a sua linha de acção na continuação da intriga e divisão das forças democráticas e da desestabilização militar, política, económica e social com vista a impedir a aprovação e a ratificação da Constituição da República. Só não conseguiram este objectivo porque o Presidente da República, general Costa Gomes, cuja urgente demissão pretendiam forçar, foi à própria Assembleia assistir à aprovação da Constituição e aí mesmo procedeu à sua ratificação (2.4.1976).
    Encerrando no plano jurídico o período revolucionário, a Constituição elaborada e aprovada em 1976 pela Assembleia Constituinte eleita por sufrágio universal em 1975, institucionalizou e inscreveu como irreversíveis as grandes conquistas democráticas. Passou a haver uma nova legitimidade: a legitimidade constitucional.
    Surge então uma nova contradição que marca a vida política nacional desde então. Aqueles mesmos que aprovaram a Constituição empreenderam, uma vez no governo, uma política de destruição e liquidação das grandes conquistas democráticas.
    As primeiras eleições para a Assembleia da República (25.4.1976) tiveram resultados um tanto inesperados. O PPD perdeu 200 000 votos. O PS perdeu 260 000 votos. O PCP aumentou 70 000 e passou de 30 para 40 deputados. PCP e PS em conjunto obtiveram a maioria na Assembleia da República (147 lugares no total de 263). Havia condições institucionais para procurar uma solução contra o avanço da reacção mas o PS, no prosseguimento da acção anterior, uma vez mais se aliou à direita. Após as eleições presidenciais (27.6.76) nas quais o PCP sofreu um revés dá-se a formação do governo do PS sozinho (23.7.76), governo minoritário apoiado pela direita, que marca o lançamento da ofensiva sistemática contra as conquistas de Abril. O Governo do PS tendo como Primeiro Ministro Mário Soares, declarou inicialmente no seu programa defender as conquistas da revolução. As orientações e as medidas tomadas foram em sentido contrário. Com o governo PS sozinho começa o que classificámos na altura a política de recuperação capitalista, agrária e imperialista, ou seja o desencadeamento do processo contra-revolucionário violando abertamente a Constituição e a legalidade democrática.

    Sucessivos governos (do PS, do PS/CDS, de iniciativa presidencial, do PS/PSD, do PSD/CDS, do PSD) prosseguiram a ofensiva contra-revolucionária tendo como objectivo estratégico a destruição das grandes conquistas da revolução de Abril (nacionalizações, reforma agrária, controle de gestão e outros direitos dos trabalhadores, poder local democrático e outras) e a restauração do capitalismo monopolista. Esse processo desenvolve-se há já 18 anos, não está terminado e é o governo do PSD de Cavaco Silva que se propõe terminá-lo.
    O facto de que as grandes conquistas democráticas foram realizadas num curto espaço de tempo (1974/1975) e de que a sua destruição já leva 18 anos sem estar terminada significa que elas correspondiam a necessidades objectivas e a aspirações profundas de vastíssimos sectores da população e representaram progressos notáveis no reconhecimento de direitos e na melhoria das condições de vida do povo português.

    O governo do PSD

    Fase adiantada da contra-revolução


    Como experiência rara, se não única, a revolução de Abril revelou que as massas populares em movimento, mesmo sem o poder político, podem realizar profundas transformações progressistas da sociedade. A evolução da situação confirmou entretanto um já velho ensinamento: que se o poder cai nas mãos da reacção é inevitável o desenvolvimento de um processo contra-revolucionário de destruição das conquistas democráticas, e de reconstituição e restauração de soluções e valores do passado.
    A contra-revolução significou e significa uma política antidemocrática nas quatro inseparáveis vertentes da democracia (a económica, a social, a cultural e a política).
    A reconstituição, restauração e domínio dos grandes grupos monopolistas, a centralização e a acumulação acelerada de capitais, tem como elementos constitutivos o esbulho de bens e dinheiros do Estado, os escândalos das privatizações e da restauração da propriedade latifundiária, a entrega ao estrangeiro de alavancas fundamentais da economia nacional, o agravamento da exploração dos trabalhadores, o desemprego, os despedimentos em massa, o trabalho infantil, a liquidação de direitos sociais, as reformas de miséria, a discriminação das mulheres, o desprezo pelos interesses e o futuro da juventude, o alastramento das áreas de pobreza, o retrocesso cultural e a veloz perversão da democracia política.
    Pretensos ideólogos e comentadores afirmam que o essencial conquistado em 25 de Abril foi a democracia política. Sem dúvida que foi uma conquista fundamental. A democracia política conquistada pela revolução está porém a ser pervertida em aspectos essenciais. Com a governamentalização e absolutização do poder. Com a supressão da fiscalização da acção governativa. Com a impunidade dos governantes por ilegalidades e corrupção. Com a partidarização pelo PSD do aparelho do Estado. Com a liquidação de direitos dos trabalhadores. Com a instrumentalização mais abjecta de grandes órgãos de comunicação social. Com a violação sistemática da legalidade.
    A perversão da democracia política não surge por acaso. É uma condição da reestruturação e restauração do capitalismo monopolista e da sobrevivência do próprio governo.

    Acompanhando a ofensiva antidemocrática nas quatro vertentes da democracia, o governo de Cavaco Silva prossegue uma atitude de submissão dos interesses portugueses a interesses estrangeiros. Decidindo com a colaboração do PS a incondicional ratificação do Tratado de Maastricht, Cavaco entrega ao estrangeiro poderes e competências fundamentais da soberania e independência nacionais. Aceita para Portugal um lugar discriminado, periférico e submisso na União Europeia, recebendo de instâncias supranacionais de carácter federalista dominadas pelos Estados mais ricos e poderosos ordens de cumprimento obrigatório para a sua política económica, industrial, agrícola, de pescas, financeira, orçamental, externa, de defesa, de segurança, de emigração.

    Agora, ao concorrerem às eleições para o Parlamento Europeu, o PS e o PSD para não perderem votos gritam que sempre estiveram contra a evolução da Europa para o federalismo. O votos que deram para ratificação do Tratado de Maastricht aí estão para os desmentir.

    O resultado da política do governo PSD não foi o proclamado "sucesso" nem o anunciado "oásis" na Europa, mas uma profunda crise económica e social, a destruição do aparelho produtivo, a recessão, zonas desertificadas, um futuro incerto para o povo e o país. Com tal política Portugal não anda para a frente antes é obrigado a uma marcha atrás na história.

    É uma vergonhosa falsificação dos factos atribuir a crise profunda e o descalabro do país à revolução de Abril e a factores externos, quando a causa directa é a política de direita, a política contra-revolucionária, a política de destruição das conquistas democráticas da revolução de Abril.

    Uma alternativa democrática para superar a crise e resolver os gravíssimos problemas existentes não é possível numa linha de restauração de elementos e valores do passado anterior ao 25 de Abril mas na projecção das experiências e valores da revolução de Abril num programa capaz de assegurar o futuro democrático e independente de Portugal.


    A revolução de Abril

    No futuro de Portugal


    Coloca-se às forças democrática e ao povo português a tarefa de impedir que as forças reaccionárias instaladas no poder continuem a sua obra já adiantada de destruição da democracia instaurada com a revolução de Abril, impedir que conduzam Portugal a um sistema e a um regime de exploração, de opressão social e política, a um verdadeiro desastre nacional.

    O futuro democrático e independente de Portugal não pode ser assegurado ressuscitando estruturas, princípios e soluções que vêem do 24 de Abril, mas sim, como muitas vezes se tem dito, nos caminhos que Abril abriu.

    A revolução de Abril trouxe-nos numerosos ensinamentos e lições que enriqueceram as nossas análises, estimularam criativos desenvolvimentos teóricos, permitiram correcta interpretação e resposta ao mundo em mudança e possibilitaram a definição mais rigorosa dos nossos objectivos e do nosso Programa. A situação internacional e a situação nacional na actualidade são muito diferentes do que eram 20 anos atrás. As mudanças trouxeram consigo experiências positivas e negativas e novas realidades com novos problemas que exigem novas soluções. A necessária estruturação, dinamização e eficiência do aparelho produtivo parte agora em sectores fundamentais (banca, indústria, agricultura, pescas) de potencialidades profundamente afectadas. A integração na União Europeia com Maastricht cria fortes obstáculos ao nosso desenvolvimento que só um governo, uma política e uma atitude verdadeiramente nacionais podem superar. Não se trata pois de repetir literalmente a experiência passada.

    Tendo em conta a diferença de situações, os valores de Abril que criaram profundas raízes na sociedade portuguesa, correspondem entretanto em muitos aspectos fundamentais a orientações válidas e constituem elementos integrantes de qualquer política verdadeiramente democrática alternativa à actual política de direita.
    Não é do interesse de Portugal e do povo português que, no prosseguimento da destruição das conquistas e valores de Abril, tenhamos no futuro um regime político de liberdades discricionadamente limitadas e reprimidas e um poder absolutizado de cariz autoritário. A economia nacional dominada e submetida aos interesses egoístas de alguns grupos de grandes capitalistas. A exploração agravada. A liquidação de direitos dos trabalhadores e de direitos sociais. A acumulação de riqueza num lado e a acumulação de miséria no outro. A regressão cultural e a perda de elementos constitutivos da própria soberania e independência.

    É do interesse de Portugal e do povo português que salvaguardando e projectando no futuro os valores de Abril, a democracia seja assegurada e aprofundada nas suas vertentes política, económica, social e cultural e no quadro de uma quinta vertente condicionante - a independência e soberania nacionais.

    Tais são as grandes linhas, aqui apenas ligeiramente apontadas, de uma política democrática que, ao comemorar Abril, propomos ao povo português. Um regime de liberdade, no qual o exercício das liberdades e direitos dos cidadãos sejam assegurados sem discriminações, com igualdade de oportunidades e dispondo de uma comunicação social pluralista, democrática e responsável. No qual um Estado democrático em que a estrutura, mecanismos de fiscalização democrática e sistema e leis eleitorais, impossibilitem o abuso, a absolutização e a impunidade do poder e compreendam a descentralização de competências, um poder local democrático, formas de participação directa do povo, uma justiça democrática, forças armadas com o primado da defesa da independência e da integridade territorial e a autonomia das Regiões Autónomas no quadro da unidade nacional.
    Um desenvolvimento económico que responda aos interesses nacionais e à solução dos grandes problemas sociais, o que exige uma economia mista com um dinâmico Sector Empresarial do Estado nos sectores básicos e estratégicos, a reorganização, especialização, modernização e dinamização do aparelho produtivo, uma reforma agrária na zona do latifúndio, a mobilização dos recursos e potencialidades nacionais, o aumento da produção e substancial redução dos grandes défices energético, alimentar, de bens de equipamento e tecnológico.

    Uma política social que restaure e aprofunde direitos dos trabalhadores que estão a ser liquidados, que promova o melhoramento das condições de vida do povo, que garanta os direitos das mulheres, dos jovens e dos reformados, que cumpra os deveres do Estado na solução dos problemas da saúde, do ensino, da habitação, da segurança social, da defesa do meio ambiente, que ponha fim às grandes discriminações e flagelos sociais.

    Uma política cultural, de educação e do ensino que, nas múltiplas áreas da sua intervenção e com as estruturas e recursos adequados, garanta a todos os cidadãos o acesso ao conhecimento, a concretização das suas vocações e potencialidades, à livre fruição e criação culturais.

    Uma política verdadeiramente nacional, seja na política interna, seja com uma política externa de segurança e defesa, de relações diplomáticas e económicas, determinada pelo primado da defesa dos interesses nacionais e da independência e soberania nacionais, pela firme recusa a aceitar ser Portugal um país submetido ao estrangeiro segundo os termos de Maastricht e igualmente pela não menos firme determinação de Portugal assumir o pleno e irrecusável direito de decidir livremente o seu próprio regime, o seu próprio governo e o seu próprio futuro.

    As comemorações do 20º aniversário de Abril

    E a falsificação da história


    Nós os comunistas e connosco muitos outros democratas comemoramos o 20º aniversário do 25 de Abril dizendo com verdade o que foi e o que significou a revolução democrática e quais foram e são as suas realizações e os seus valores.
    Está porém em curso uma gigantesca tentativa de falsificação da história, que, invocando as comemorações, visa não comemorar mas denegrir, contestar e pôr em causa o 25 de Abril e a revolução democrática.

    Esse é o sentido geral e o objectivo cada vez mais descarado, em livros, artigos, folhetos, conferências, colóquios, entrevistas, debates, programas de horas inteiras em televisões e em rádios.

    O 25 de Abril, que nós comemoramos, significa o julgamento e justa condenação histórica do passado de opressão e terror fascistas, e daí a necessidade de informar e esclarecer, sobretudo as jovens gerações, do significado libertador da revolução democrática.
    A gigantesca operação de falsificação em curso, pretende branquear o passado de opressão e terror fascista e transformar as comemorações no julgamento e condenação do 25 de Abril. Assiste-se a revoltantes espectáculos em grandes órgãos de comunicação social. Silenciam-se as vítimas do fascismo e as forças às quais se deve a liberdade e a democracia e tratam-se como heróis torcionários e assassinos que vêm falar e negar os seus crimes como se estivéssemos ainda nos tempos da ditadura dos tribunais plenários e fossem eles os acusadores.

    O 25 de Abril que nós comemoramos, foi o culminar da resistência e da luta contra a ditadura fascista ao longo de 48 anos, luta da classe operária, dos trabalhadores, do povo, dos democratas, sem a qual não teria sido possível a revolução democrática. A grande operação de falsificação histórica procura ou silenciar, ou denegrir essa luta heróica de sucessivas gerações.

    O 25 de Abril que nós comemoramos foi o levantamento militar conduzido pelos capitães do MFA logo seguido do levantamento popular.

    A grande operação de falsificação em curso calunia a acção revolucionária do MFA e do movimento operário e popular procurando como que colocá-los no banco dos réus de um tribunal de opinião pública em que os juízes seriam os representantes do passado fascista. O 25 de Abril que nós comemoramos significou a conquista da liberdade e de um regime democrático com os seus elementos constitutivos de natureza política, económica, social e cultural. A grande operação de falsificação histórica em curso procura denegrir, acusar e condenar as grandes conquistas democráticas da revolução. Em torno dos chamados três DDD (Democratizar, Descolonizar, Desenvolver) escrevem-se infindáveis textos e multiplicam-se, como espectáculos mediáticos, debates que, pela composição discriminatória dos participantes e pela condução dos próprios debates pretendem inculcar a ideia de que a revolução de Abril não democratizou, nem desenvolveu o país e que a descolonização foi uma história de erros e traições. Entre as grandes mentiras conta-se aquela que atribui à revolução democrática a destruição do aparelho produtivo e a actual crise económica e social que se devem com verdade à contra-revolução.
    O 25 de Abril que nós comemoramos contem a exaltante luta vitoriosa contra sucessivas tentativas de golpes reaccionários que pretendiam cortar o passo à democratização da sociedade portuguesa, conquistar o poder e instaurar uma nova ditadura.
    A grande operação de falsificação em curso, retomando infames invencionices, pretende que após o derrubamento do governo fascista quem quis tomar o poder e instaurar uma ditadura foi o PCP e não a reacção.

    O 25 de Abril que nós comemoramos é a democracia cujos elementos constitutivos fundamentais têm sido destruídos pelo processo contra-revolucionário que o actual governo com a sua política antidemocrática procura completar. As comemorações, por isso, significam também a luta actual, necessária e urgente por uma alternativa democrática ao governo e à política de direita.

    A grande operação de falsificação histórica procura inculcar a ideia de que a política de direita, nomeadamente do governo do PSD de Cavaco Silva é que constitui a verdadeira democracia contra projectos totalitários.

    O 25 de Abril que nós comemoramos é a revolução democrática na qual plena e frontalmente assumimos na altura e assumimos agora a responsabilidade da nossa intervenção e contribuição.

    A grande operação de falsificação histórica deforma, deturpa e inventa responsabilidades, absolve responsáveis e oculta cumplicidades.

    O 25 de Abril que nós comemoramos é a liberdade e a democracia para a qual o nosso Partido, sempre com os trabalhadores, sempre como o povo, deu uma contribuição sem paralelo, tanto pela luta heróica de gerações de comunistas no tempo da ditadura, como no período da revolução. A grande operação de falsificação histórica procura ou silenciar, ou caluniar nos termos mais vis a luta do PCP.
    O 25 de Abril que nós comemoramos é o 25 de Abril dos capitães do MFA, dos trabalhadores e do povo, e por isso, contribuindo para as múltiplas e variadas iniciativas comemorativas, estamos empenhados nas comemorações populares, que adquirem este ano particular importância. Neste sentido é apropriado fazer aqui um apelo para a participação na manifestação popular tradicional em Lisboa no dia 25 na Avenida da Liberdade e para a grande manifestação da CGTP-IN no 1º de Maio fazendo recordar o histórico 1º de Maio de 1974.

    Contrariamos atitudes e iniciativas que, a pretexto das comemorações, falsifiquem a história. E estamos empenhados em que as comemorações estejam à altura e sejam dignas da data e dos feitos que comemoramos.
    O 25 de Abril que comemoramos, não é um mero acontecimento passado que lembremos, mas um grande feito histórico que mantém marcas profundas na vida presente e contem experiências e valores indispensáveis para o futuro de Portugal. Viva o 25 de Abril!

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    terça-feira, 18 de março de 2008

    Notas para uma melhor compreensão da teoria classista marxista-leninista

    No momento em que revolucionários marxistas comemoram em dezenas de países o 160º aniversário do Manifesto Comunista, em 26.02.2008, Ana Saldanha escreveu para odiario.info este artigo
    Ana Saldanha*

    « Assim como Darwin em relação à lei do desenvolvimento dos organismos naturais, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da História humana: o simples facto, escondido sobre crescente manto ideológico, de que os homens reclama, antes de tudo, comida, bebida, moradia e vestuário, antes de poderem praticar a política, ciência, arte, religião, etc.; que, portanto, a produção imediata de víveres, e com isso o correspondente estágio econômico de um povo ou de uma época, constitui o fundamento a partir do qual as instituições políticas, as instituições jurídicas, a arte e mesmo as noções religiosas do povo em questão se desenvolvem na ordem e em elas devem ser explicadas – e não ao contrário, como nós até então fazíamos. »
    (Engels, "Discurso no Funeral de Karl Marx”, 1883 in
    http://www.marxists.org/portugues/marx/1883/03/22.htm).

    A teoria transformada em força material

    Para melhor compreender o conceito de classes antagónicas fundamentais e do seu papel histórico, recuaremos ao jovem Marx e à evolução do pensamento filosófico da primeira metade do século XIX.

    Hegel preconizava uma filosofia da identidade, na qual o que é, « é o que deve ser ». O real não teria de ser transformado para se adaptar ao ideal, logo a prática histórica dos homens não poderia concretizar o ideal. Esta perspectiva idealista assenta no princípio de que « as formas concretas da vida social não são senão reflexos da essência, fenómenos da Ideia »[1]. O jovem Marx, ao contrário, defende que a teoria pode transformar-se em força material, partindo, não de pressupostos abstractos, mas da análise da realidade concreta. Em Hegel encontraremos a universalidade da Ideia, enquanto em Marx o ideal traduzir-se-á na consciência dos homens.

    Com Marx, o problema deixa de ser a simples concepção da realidade mas sim o de compreender o seu movimento interno, com vista à sua transformação.

    Sendo a teoria uma força material, um dos problemas que viria a ser colocado seria o da relação da teoria com a prática :

    « Para Marx e Engels, a práxis é essencialmente a prática social material que vai da acção e actividades práticas humanas à experiência científica e social, e da produção e reprodução social dos meios de vida materiais à praxis revolucionária. »[2]

    Marx proporá, assim, uma resposta dialéctica teoria-praxis, na qual ambos se determinarão reciprocamente.

    a) Da teoria à praxis

    Para Marx, as ideias possuem um poder que conduz à acção, e é este poder potencial que permite a transformação das ideias num acto.

    As estruturas teóricas do conhecimento e do saber não têm, assim, um fim em si mesmas, antes são função de uma praxis: « a teoria encontra na realidade da praxis social a sua expressão material, tende a provar que a sua aceitação e maior ou menor possibilidade (...) de implantação, tem raízes sociais objectivas, e especificamente de classe »[3].

    O jovem Marx afirmará que « (...) as revoluções necessitam de um elemento passivo, de uma base material. A teoria só se realiza numa nação na medida em que é a realização das suas necessidades. »[4]

    Marx e F. Engels compreendem, já no início dos seus escritos, a importância da articulação do conhecimento e da acção, de forma a conhecer o real para o poder revolucionar, na prática. A teoria teria, então, de ser introduzida « de fora » nas consciências, suscitar a consciencialização daqueles que devem tomar consciência de si e da posição material que ocupam.

    Em 1844, Marx defende que as revoluções sociais não poderiam ter lugar, apenas, na consciência dos homens; a força social material, seria, assim, determinante para transformar revolucionariamente. A prática tem de ser uma actividade transformadora do real, cujo objectivo será a edificação de uma nova ordem social. Esta materialização da ideia, mesmo se submetida « de fora » à consciência dos homens, emana, ela própria, das relações sociais das massas.

    A intervenção das massas na praxis social material seria, assim, fundamental para o processo de materialização das ideias e de intervenção no curso da História :

    « A interacção dialéctica do material e do ideal estriba numa base material histórica e concretamente definida : a praxis social. Ela, e só ela, como actividade prática sócio-histórica, consciente, racional, orientada para fins, possibilita o processo dialéctico do reflexo criador, e até antecipado, da realidade material pelo pensamento como ainda a realização material do ideal »[5].

    Um real que seja a realização material do ideal será um problema desenvolvido a partir de 1845, momento a partir do qual a concepção materialista dialéctica se elabora plenamente, a partir da concepção de « teoria como força material »: “a força material tem de ser deposta pela força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é capaz de prender os homens desde que demonstre a sua verdadeira face ao homem, desde que se torne radical.”[6].

    Será com base na concepção materialista da história que K. Marx elabora o conceito de classe.

    b) Dialéctica: a luta dos contrários

    Originariamente, dialéctica significava a arte do diálogo, a arte da discussão. Será mais tarde que nascerá a significação que constitui o seu âmago: a luta dos contrários.

    Com Hegel, a dialéctica (método que, pela procura dos contrários e pela sua oposição, permite chegar à verdade) torna-se a expressão do próprio movimento do mundo. Há, desta forma, um certo número de elementos que se combatem dentro de qualquer fenómeno, podendo esses elementos reduzir-se a dois: a tese e a antítese. A luta desses elementos contraditórios acaba por destruir a unidade do fenómeno, dando origem a um outro – a síntese. Esta não é a soma dos elementos contraditórios, mas antes a sua negação.

    Na continuidade da filosofia idealista hegeliana, Marx e Engels, na aplicação real que dela fazem, consideram que o que caracteriza fundamentalmente uma classe é a sua oposição a outra. As classes sociais são, desta forma, definidas a partir das relações de produção, em função do lugar que ocupam na relação de produção e de propriedade. Os proprietários dos meios de produção formam uma classe que se apropria da força de trabalho daqueles que deles são desprovidos, formando estes uma outra classe. É nesta relação de oposição que se considera o marxismo dialéctico: as classes sociais só existem porque se opõem.

    Quanto ao “materialismo”, este opõe-se ao “idealismo”, preconizado por Hegel: “A questão da relação do pensamento com o ser, do espírito com a Natureza é a questão suprema de toda a filosofia (...) Conforme respondiam desta ou daquela maneira a esta questão, os filósofos dividiam-se em dois grandes grupos. Os que afirmavam o carácter primordial do espírito em relação à natureza e que admitiam (...) uma criação do mundo, de qualquer tipo que fosse (...). Esses pertenciam à facção idealista. Os outros, que consideravam a natureza como o elemento primordial pertenciam às diferentes escolas do materialismo”[7].

    Para Hegel, idealista, é a Ideia que cria a realidade; a Ideia preexiste no estado puro no mundo e só se torna sensível realizando-se. Ao contrário, a teoria marxista considera que é a realidade a primeira – materialismo -, sendo no seu seio que se desenrola a luta dos elementos contraditórios:

    “O meu método dialéctico não só difere, pela sua base, do método hegeliano, mas é exactamente o seu oposto. Para Hegel, o movimento do pensamento, que ele personifica com o nome de Ideia, é o demiurgo da realidade, que não é senão a forma fenomenal da Ideia. Para mim, pelo contrário, o movimento do pensamento é apenas o reflexo do movimento real, transposto e traduzido no cérebro do homem.”[8].

    E, assim, nasce a concepção materialista dialéctica da História.

    A sociedade: grupos de indivíduos e não indivíduos isolados.
    Importância do conceito de classe

    O estudo isolado do indivíduo na sociedade dá lugar, com K. Marx, ao estudo das actuações de grupos de indivíduos que se diferenciam entre si pelo papel desempenhado no sistema de relações de produção e pelas condições de produção. Os interesses que, dessa forma, caracterizam a actuação do indivíduo serão determinados pela sua pertença a uma determinada classe.

    a) A violência não pode criar a propriedade privada

    E. Dühring, filósofo alemão, escreve uma obra na qual imagina uma relação entre dois habitantes (Robinson e Sexta-feira) numa ilha perdida, estendendo esta relação ao conjunto da sociedade sua contemporânea. Sexta-feira torna-se escravo de Robinson porque este possuía uma espada e, assim, podia dominar, pela força, o outro: “Vemos, pois, que o exemplo pueril, expressamente inventado pelo Sr. Dühring para nos provar que a violência é um factor "historicamente fundamental", na realidade nos demonstra que este factor apenas é um meio, enquanto o fim está precisamente no proveito económico.”[9]

    F. Engels responde a Dühring com a obra “Anti-Dühring”, na qual demonstra a importância das causas económicas da diferenciação da sociedade em classes:

    a) para se possuir um instrumento de violência é preciso fabricá-lo;
    b) a sua fabricação (factor económico) é a condição prévia de violência;
    c) a escravatura exclui-se perante uma baixa produtividade do trabalho, pois, neste caso, não existe produção de mais-valia.

    A divisão da sociedade em classes supõe, assim, um desenvolvimento da produção social no qual se produza o produto necessário e o produto acrescentado, sendo este, por sua vez, premissa da propriedade privada, a qual não pode ser criada pela violência, por si só.

    Foi o aperfeiçoamento dos utensílios e o desenvolvimento da divisão social do trabalho, com o aumento da sua produtividade, que criaram as condições económicas que conduziram à desagregação da estrutura da comunidade primitiva; é na esfera da produção que podemos compreender a divisão da sociedade em classes.

    Na obra citada de Engels, este afirma que “é preciso submeter toda a história do passado a um novo exame” e que se “verificou que toda a história passada era a história da luta de classes” e que “essas classes sociais, uma em luta contra a outra, são sempre o produto das relações de produção e de troca”[10]. Estava, assim, explicada a concepção materialista da história e a via explicativa da consciência dos homens a partir do seu ser, ao invés de explicar o seu ser a partir da consciência.

    O materialismo histórico demonstrará que a existência das classes se encontra ligada a determinadas fases de determinado desenvolvimento histórico da produção.

    b) A passagem das relações de igualdade da comunidade primitiva para as de dominação

    Na comunidade primitiva, a sociedade não estava dividida em classes, não havia exploradores nem explorados, pois o trabalho do homem era suficiente para se sustentar a si próprio – economia de subsistência (comunismo primitivo). As classes sociais estão associadas a determinadas fases históricas do desenvolvimento da produção, sendo uma consequência da privatização da terra e do aumento da produtividade do trabalho.

    Assim, terá sido o isolamento dos homens no trabalho e o aparecimento da propriedade privada que terá dado origem à dominação de um grupo de indivíduos minoritário sobre um outro. A origem das mais antigas classes exploradas encontra-se, desta forma, no processo de formação da propriedade privada

    Na sociedade primitiva, a defesa dos interesses comuns era confiada aos membros com maior autoridade. À medida que as condições criadas para produzir mais-valia evoluíam, os chefes militares e os sacerdotes tinham a possibilidade de agregar uma grande parte desse produto: os interesses particulares começaram, assim, a sobrepor-se aos interesses da sociedade e os servidores da sociedade tornaram-se senhores. A força de trabalho suplementar era, por seu lado, fornecida pelos prisioneiros de guerra (antes mortos ou assimilados pela tribo).

    Poderemos, então, observar que a estrutura social é determinada, em última instância, pela estrutura económica. Cada modo de produção dá lugar a um sistema específico de classes sociais, as quais se definem em função da relação com os meios de produção, sendo o antagonismo entre a classe que detém os meios de produção e a que deles se vê desapropriada que originará a luta de classes:

    “O homem livre e o escravo, o patrício e o plebeu, o barão feudal e o servo, o mestre de uma corporação e o oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante antagonismo entre si, travaram uma luta ininterrupta, umas vezes oculta, abertas outras, que acabou sempre com uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou com o declínio comum das classes em conflito. (...) Na Roma antiga temos patrícios, cavaleiros, plebeu, escravos; na Idade Média, senhores feudais, vassalos, mestres de corporações, oficiais, servos.”[11]

    Dos cinco tipos históricos de modos de produção – comunidade primitiva, esclavagismo, feudalismo, capitalismo e socialismo – cada um deles é caracterizado por “um nível específico das forças produtivas e por relações de produção correspondentes”[12]. Comunidade primitiva e socialismo são modos de produção não antagónicos, enquanto esclavagismo, feudalismo e capitalismo são antagónicos, nos quais as relações de produção se baseiam, como referido, no controlo da propriedade privada dos meios de produção.

    Um novo período de desenvolvimento da sociedade humana inicia-se, desta forma, com a formação de classes antagónicas.

    c) As classes antagónicas (fundamentais) na sociedade capitalista

    A sociedade humana, esclavagista, feudal ou capitalista, rege-se pelo antagonismo das classes principais, cuja origem se encontra no modo de produção. Por um lado, temos a classe dirigente e organizadora das relações económicas e detentora dos meios de produção, e, por outro, temos a classe explorada.

    Na sociedade capitalista, os capitalistas constituem a classe exploradora, proprietária dos meios de produção e que reparte entre si a mais-valia criada pelos operários. Os operários, por seu lado, constituem a classe explorada, sem meios de produção e obrigados a vender a sua força de trabalho, recebendo, em troca, um salário. São eles os produtores directos da mais-valia que é apropriada pelos capitalistas: “na medida em que se desenvolve a burguesia, isto é, o capital, desenvolve-se, também, o proletariado, a classe dos modernos operários, os quais só vivem enquanto têm trabalho e só têm trabalho enquanto o seu trabalho aumentar o capital”[13] e, enquanto “o escravo está vendido de uma vez para sempre, o proletário tem de se vender a si próprio, diariamente e hora a hora”[14].

    A luta de classes é, assim, desencadeada pela relação entre essas classes antagónicas.

    A classe explorada, no período das formações pré-capitalistas, teve como missão histórica o abalo dos pilares da antiga sociedade. A sua luta (escravos, camponeses) assumia, no entanto, formas desorganizadas e espontâneas que estavam, dessa forma, condenadas ao fracasso.

    Será, então, ao proletariado, organizado como classe, que competirá a destruição das velhas estruturas da sociedade e a criação de uma nova. Aliás, não possuindo propriedade privada, o proletariado apenas terá interesse na sua liquidação.

    A construção de uma nova sociedade, a sociedade socialista, tendo como vanguarda da luta o proletariado, executar-se-á, ainda, graças à união do proletariado com outros trabalhadores não pertencentes à classe operária. Assim, o proletariado, apreendendo os interesses das classes proletárias e dos outros trabalhadores, intervirá como seu dirigente e organizador:

    “A classe revolucionante entra em cena desde o princípio, já que tem pela frente uma classe, não como classe, mas como representante de toda a sociedade, ela aparece como a massa inteira da sociedade face à única classe, a dominante. E consegue-o porque, a princípio, o seu interesse anda realmente ainda mais ligado ao interesse comunitário de todas a demais classes não dominantes, porque sob a pressão das condições até aí vigentes ele não pôde ainda desenvolver-se como interesse particular de uma classe particular. A sua vitória aproveita também, por isso, a muitos indivíduos das demais classes que não se tornam dominantes, mas apenas na medida em que permite a estes indivíduos subirem à classe dominante.”[15]

    d) Classes não fundamentais

    As classes fundamentais são, então, as que representam os pólos antagónicos que se geram com o modo de produção de dominação. Cada uma dessas classes integra várias camadas.

    No interior da classe dominante da sociedade capitalista podemos considerar as seguintes camadas: a burguesia monopolista (monopolista de Estado); os médios e os pequenos capitalistas. A burguesia monopolista de Estado é pouco numerosa mas domina os principais meios de produção, incluindo-se nesta camada um grupo especial: os representantes do complexo militar-industrial. A burguesia monopolista une, assim, os grandes monopolistas e os círculos militaristas.

    Os pequenos e médios capitalistas dependem da burguesia monopolista de Estado, sendo frequentemente por esta pressionados. Este facto permite que participem, em determinadas ocasiões, na luta anti-monopolista.

    No interior da classe operária podemos considerar a camada dos quadros operários, que conduzem a luta contra a exploração capitalista, a camada da aristocracia e da burguesia operárias, que assume compromissos com a classe exploradora, e a camada dos operários oriundos da média ou da pequena burguesia.

    Para a compreensão da complexa estrutura da sociedade capitalista, teremos, no entanto, de fazer referência às “classes não fundamentais” e compreender o seu papel na luta de classes. Estas classes não reflectem a essência das relações de produção de um determinado modo de produção, podendo estar ligadas a vestígios dos modos de produção anteriores ou ao nascimento de novas relações de produção.

    Na sociedade capitalista actual, poder-se-á considerar como uma “classe não fundamental” (e não como uma camada da classe fundamental dominante) as camadas da pequena burguesia da cidade (artesãos, artífices, pequenos lojistas...) que, não conseguindo, muitas vezes, fazer face à luta concorrencial com a burguesia monopolista, caiem, frequentemente, na ruína, pelo que podem, ocasionalmente, unir-se à luta do proletariado. A pequena burguesia, no entanto, não desaparece e nunca desaparecerá sob o capitalismo; o capitalismo não só liquida como também cria a pequena burguesia.

    Na formação capitalista, fazem, também, parte das “classes não fundamentais” os senhores da terra e o campesinato. Campesinato que, devido à evolução técnica e à mecanização da produção, se encontra em progressiva erosão e, assim, condenado à ruína pelos monopólios e pelo órgão político que os sustém, o Estado. A precarização da situação das massas camponesas faz com que se aproximem e estabeleçam alianças com o proletariado na sua luta anti-monopolista.

    Além das classes fundamentais e não fundamentais, existem, ainda, “diferentes camadas intermédias”, como os funcionários e a intelectualidade, que incluem, no seu seio, membros das classes fundamentais e/ou não fundamentais. Estas camadas encontram-se em crescimento nos actuais países capitalistas.

    Hoje em dia, a grande massa dos funcionários e da intelectualidade encontra-se sujeita a condições precárias de trabalho que acentuam a sua exploração. Poderemos, desta forma, afirmar que assistimos a uma “proletarização” do trabalho assalariado, manual ou intelectual, o que cria condições para uma aproximação das lutas e reivindicações destas camadas com a luta do proletariado.

    Entre os funcionários e a intelectualidade encontram-se, ainda, os representantes do mais alto poder estatal administrativo (administradores das companhias, grandes juristas...). Ao contrário da grande massa de funcionários e da intelectualidade, pela posição e papel social que desempenham, estes representantes do poder unem-se à classe dominante.

    Por seu lado, à existência do Estado como aparelho distinto, que se especializa na promulgação e na execução das leis, temos, ainda, como Marx e Engels o fizeram, de considerar a criação/existência de grupos de pessoas distintas da classe dos capitalistas, que possuem atribuições e obrigações especiais – a burocracia, também ela uma camada social intermédia, situada entre o proletariado e a burguesia. Como esta camada exerce o poder directamente, tem tendência para realizar os seus interesses específicos, como camada, independentemente de, no seu interior, se encontrarem membros das classes fundamentais ou não fundamentais.

    G. Gurvitch, em 1966, considerou, ainda, que uma nova camada, igualmente intermediária entre o proletariado e a burguesia, nascera, no quadro da divisão do trabalho, com a introdução da democracia parlamentar burguesa e com o aparecimento dos partidos políticos. Tal camada seria o “tipo de político partidário”, “representantes da pequena burguesia, em virtude de o seu pensamento não passar além das fronteiras que o pequeno-burguês não ultrapassa na vida (..)”[16].

    e) Classes antagónicas e não antagónicas

    As classes podem ser fundamentais ou não fundamentais, mas também antagónicas ou não antagónicas. As classes antagónicas, como os proletários e os capitalistas, caracterizam-se pelo facto de os interesses de cada uma destas classes se oporem inconciliavelmente; por seu lado, as classes não antagónicas, como os operários e os camponeses, caracterizam-se pelo facto de possuírem divergências mas, também, de possuírem interesses comuns que podem possibilitar a sua aliança.

    O facto de algumas pessoas ou grupos se deslocarem de uma classe ou de uma camada para outra não significa que a estrutura classicista da sociedade desaparece, visto que as contradições e antagonismos que existem entre as classes não só perduram como continuam a acentuar-se.

    f) Divisão do trabalho na classe dominante

    Marx e Engels consideram, iguelmente, a existência de uma divisão de um tipo de trabalho no seio da classe dominante – o trabalho espiritual:

    “A divisão do trabalho, que já atrás (pp. [15-18]) encontrámos como uma das principais forças da história até aos nossos dias, manifesta-se agora também na classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, pelo que no seio desta classe uma parte surge como os pensadores desta classe (os ideólogos conceptivos activos da mesma, os quais fazem da formação da ilusão desta classe sobre si própria a sua principal fonte de sustento), ao passo que os outros têm uma atitude mais passiva e receptiva em relação a estas ideias e ilusões, pois que na realidade são eles os membros activos desta classe e têm menos tempo para criar ilusões e ideias sobre si próprios. No seio desta classe pode esta cisão da mesma chegar a uma certa oposição e hostilidade entre ambas as partes, mas que por si própria desaparece em todas as colisões práticas em que a própria classe fica em perigo, desaparecendo então também a aparência de que as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e teriam um poder distinto do poder desta classe. A existência de ideias revolucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma classe revolucionária, e já atrás ficou dito o que era necessário sobre estas premissas”.[17]

    Admitem, ainda, a possibilidade de conflitos entre a classe dominante e os seus representantes políticos e entre estes e a burocracia, relativamente independente. Relembre-se que o grupo de representantes políticos e o grupo de burocratas – camadas intermédias entre o proletariado e a burguesia – podem ter na sua composição tanto membros da classe dominante como membros que se situam fora dela.

    A luta de classes

    Na sequência do aprofundamento da teoria marxista, Lénine distinguiu três esferas da luta de classes: a esfera da luta económica, a esfera da luta política e a esfera da luta ideológica.

    A luta política é o instrumento fundamental para o derrube da actual dominação de classe. Como forma decisiva da luta política, Marx e Engels consideravam a revolução – derrube ilegal e armado da ordem política e económica existente – o elemento de transformação da sociedade capitalista numa sociedade socialista. Tal não exclui, acrescentam, as formas legais da luta, conduzidas nos limites impostos pela sociedade capitalista, como a consciencialização e organização políticas do proletariado, que visam atenuar e denunciar a exploração: “Sobre o que repousa uma revolução parcial, uma revolução meramente política? No fato de emancipar uma parte da sociedade burguesa e de instaurar a sua dominação geral (...)”[18]

    A luta da classe dominada contra a classe dominadora inicia-se quando os operários começam por formar coligações contra os burgueses, por exemplo, em defesa do seu salário. “(...) Aqui e além a luta declara-se em motins. De tempos a tempos vencem os operários, mas só transitoriamente. O resultado real das suas lutas não é o êxito imediato, é a união dos operários que cada vez mais se propaga. Fomentam-na os meios crescentes de comunicação. (...) E só é necessária esta ligação para centralizar as muitas lutas locais, por toda a parte com o mesmo carácter, numa luta nacional, numa luta de classes”[19].

    Nas várias lutas, as forças políticas das classes opostas chocam entre si, dependendo o resultado da luta da mútua relação de forças.

    a) Dominação política, económica e ideológica

    A luta política, económica e ideológica da classe dominada existe como oposição à dominação igualmente política, económica e ideológica da classe dominante.

    A dominação económica baseia-se no controlo superior dos meios de produção, do processo e do produto do trabalho.

    A definição da relação de classe é a definição da relação de dominação económica.

    A posse de escravos (esclavagismo), terras (feudalismo) e capital (capitalismo) são as três formas básicas de propriedade, e são elas que definem as relações de subordinação e de superioridade no processo de trabalho e da apropriação dos produtos criados. No capitalismo, no entanto, a imposição económica substitui outras formas de imposição do trabalho, que se manifestavam no esclavagismo e no feudalismo.

    No primeiro sistema, o escravo é mercadoria e instrumento de trabalho; no segundo, o servo, ligado à terra e ao senhor feudal, é sua propriedade pessoal; no capitalismo, quem decide a relação de dependência do operário “livre” é o mecanismo de mercado e a imposição económica.

    A produção capitalista baseia-se no facto de que, sob a forma de salário, o operário obtém o equivalente ao valor da sua força de trabalho, mas não obtém o equivalente ao seu trabalho, já que “O valor da força de trabalho e o valor que ela cria no processo de trabalho são (...) duas magnitudes distintas.”[20] O excedente criado pelo operário e apropriado pelo capitalista constitui a mais-valia, na qual se baseia a essência mesma da produção capitalista:

    “(...) não importa ao processo de criação da mais valia que o trabalho de que se apossa o capitalista seja trabalho simples, trabalho social médio, ou trabalho mais complexo, de peso específico superior. Confrontado com o trabalho social médio, o trabalho que se considera superior, mais com¬plexo, é dispêndio de força de trabalho formada com custos mais altos, que requer mais tempo de trabalho para ser produzida, ten¬do, por isso, valor mais elevado que a força de trabalho simples. Quando o valor da força de trabalho é mais elevado, em¬prega-se ela em trabalho superior e materializa-se, no mesmo es¬paço de tempo, em valores proporcionalmente mais elevados. Qualquer que seja a diferença fundamental entre o trabalho do fiandeiro e o do ourives, à parte do trabalho deste artífice com a qual apenas cobre o valor da própria força de trabalho não se distingue qualitativamente da parte adicional com que produz mais valia. A mais valia origina-se de um excedente quantitativo de trabalho, da duração prolongada do mesmo processo de trabalho, tanto no processo de produção de fios, quanto no processo de produção de artigos de ourivesaria.”[21]

    A dominação política, por seu lado, baseia-se na garantia estatal do controlo superior dos meios, do processo e do produto de trabalho pela classe dominante.

    Ora, o órgão político de dominação de classe é o Estado, o qual exerce uma opressão política de classe, “segundo Marx, o Estado é o órgão de dominação de classe, o órgão de opressão de uma classe por outra, é o resultado da ‘ordem’ que legaliza e consolida esta opressão, amenizando os conflitos de classe”[22]:

    “Como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses comuns e se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado, adquirem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei assentaria na vontade, e para mais na vontade dissociada da sua base real, na vontade livre. Do mesmo modo o direito é, por seu turno, reduzido à lei.”[23]

    O Estado capitalista corresponde, desta forma, a uma ditadura da burguesia, sendo a dominação ideológica a consagração do sistema ideológico da classe dominante:

    " As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias (...), das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem, na medida (...) em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo; que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época. Numa altura, por exemplo, e num país em que o poder real, a aristocracia e a burguesia lutam entre si pelo domínio, em que (...) o domínio está dividido, revela-se ideia dominante, a doutrina da divisão dos poderes, que é agora declarada uma "lei eterna". "[24].

    A destruição do órgão de dominação da burguesia terá, por seu lado, de ser feita revolucionariamente: “O grau transitório entre o Estado, órgão de dominação da classe dos capitalistas, e o Estado, órgão de dominação do proletariado, é precisamente a revolução, que consiste em derrubar a burguesia e quebrar, destruir a sua máquina de Estado(...). Que a ditadura da burguesia deve ser substituída pela ditadura de uma classe, do proletariado, que aos «graus transitórios» da revolução se seguirão os «graus transitórios» da extinção gradual do Estado proletário (...)”[25]

    b) Ideologia e classe dominada – a consciência de classe

    A ideologia proletária é incomparável a todas as outras. É uma ideologia privilegiada, já que é posta em prática com a finalidade de transformar o mundo e de terminar com a existência de classes e, consequentemente, com a existência das próprias ideologias.

    Foram Marx e Engels quem distinguiu, pela primeira vez, “situação de classe” e “consciência de classe”.

    Ora, as classes não são meros agregados estatísticos, não são apenas “classes em si”, podendo transformar-se em classes “para si” e, assim, adquirir consciência de classe, ou seja, consciência da sua identidade e dos interesses comuns aos seus membros, inserindo-se, dessa forma, na luta de classes.

    A burguesia, que teve, na história, um papel revolucionário, excedeu-se no domínio da ideologia, surgindo a sua consciência de classe. O proletariado, por seu lado, “só toma consciência de si próprio por etapas. É apenas a ideologia comunista (...) que o vai ajudar a constituir-se definitivamente como classe”[26], sendo a etapa final deste processo a organização de um partido político que se proponha tomar o poder. Diz-nos o “Manifesto” que o “poder político é o poder organizado de uma classe social para a opressão de uma outra classe” e que o “Estado burguês é o organismo protector da sociedade capitalista”, sendo a burguesia moderna “o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de profundas transformações no modo de produção e de circulação”.

    Tal como a burguesia (que, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, lutou pelo domínio político exclusivo no moderno estado parlamentar), também o proletariado terá de passar por uma série de etapas no domínio político.

    O executivo do Estado moderno mais não é do que uma comissão para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa. Sendo, inicialmente, a classe explorada pela burguesia, o proletariado emancipar-se-á gradualmente e tomará consciência de classe; “aproveitando-se dos conflitos entre a burguesia e os proprietários fundiários, e reforçado pela integração, no seu seio, de grandes porções da pequena burguesia industrializada, o proletariado arranca ao poder político satisfações parciais que lhe darão a possibilidade de fazer a Revolução”[27]. Esta distinguir-se-á da Revolução burguesa pelo facto de que terminará com as classes e com o próprio Estado.

    Assim, para Marx e Engels, a mudança das condições de vida e de existência dos homens em sociedade muda o seu modo de ver o mundo e leva-os a adquirir (caso não a possuam) a consciência de pertença a uma determinada classe. Com o intuito de defender os seus direitos, o operariado agrupa-se numa classe: “Será necessária uma inteligência profunda para compreender que com as mudanças nas condições de vida dos homens, nas suas relações sociais, na sua existência em sociedade, mudam, também, as suas concepções, as suas maneiras de ver, os seus conceitos, numa palavra, a sua consciência. (...) A exploração de uma parte da sociedade pela outra é um facto comum a todos os séculos passados. Não é de admirar, por isso, que a consciência social de todos os séculos (...) se mova em certas formas comuns, em formas de consciência que só se dissolvem completamente com o desaparecimento definitivo do antagonismo de classes”[28].

    V. I. Lenine e a teoria classista marxista

    V. I. Lénine, n’« Uma Grande Iniciativa », refere as características fundamentais das classes sociais:

    a) a POSIÇÃO num sistema historicamente determinado da produção social – as classes serão, assim, formações históricas, ligadas a um determinado sistema de produção social. As classes fundamentais distinguem-se pela posição ocupada no sistema de produção: uma dirige a produção e a outra realiza directamente o processo de produção;

    b) a RELAÇÃO com os meios de produção – esta característica constitui a diferença fundamental entre as duas classes fundamentais. A posição de uma classe na sociedade, o seu papel no processo de produção social, a fonte do seu rendimento, o seu papel histórico, tudo isto depende das relações que uma classe mantém com os meios de produção. A repartição dos meios de produção expressa-se através da propriedade privada. Estando esta ligada com as relações de dominação, para acabar com a exploração ter-se-á de acabar com a propriedade privada;

    c) o PAPEL na organização social do trabalho – a classe que possui os meios de produção é a classe organizadora, enquanto que a classe que delas está desprovida se encontra afastada da direcção da produção;

    d) o MODO de obtenção e as proporções do rendimento.

    Em conclusão, “Chamam-se classes a grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre si pelo seu lugar num sistema de produção social historicamente determinado, pela sua relação (as mais das vezes fixada e formulada nas leis) com os meios de produção, pelo seu papel na relações na organização social do trabalho e, consequentemente, pelo modo de obtenção e pelas dimensões da parte da riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de pessoas, um dos quais pode apropriar-se do trabalho do outro graças ao facto de ocupar um lugar diferente num regime determinado de economia social”[29].

    A actualidade da luta de classes

    Politólogos e sociólogos modernos preconizam o fim da luta de classes e, como tal, negam a própria existência das classes.

    Para tal, criam teorias funcionalistas de estratificação social, sustentando que a diferenciação social é um fenómeno universal e necessário em todas as sociedades, desempenhando uma função social necessária, com vista a distribuir os membros da sociedade pelas várias ocupações e papéis existentes.

    Segundo essa concepção, será, então, o prestígio ligado a cada ocupação que determinará o lugar do indivíduo na hierarquia social. A divisão em estratos é, desta forma, arbitrária, não existindo em agrupamentos definidos.

    Essas doutrinas assentam numa aceitação comum de certa hierarquia de ocupações, baseando-se em pressupostos como “a estratificação social sempre existiu e é uma necessidade de todas as sociedades”, que “é impossível definir sem ambiguidades uma escala de importância das ocupações” e que “existe uma mobilidade social total”[30].

    Ora, tais concepções têm como objectivo primeiro a aceitação do indivíduo do lugar que ocupa na sociedade, impossibilitando, assim, a sua consciência de pertença a uma determinada classe e, consequentemente, neutralizando a própria luta.

    O indivíduo terá, então, como único objectivo a progressão na “hierarquia social”. O sistema de exploração não teria, desta forma, alternativa, e a barbárie capitalista seria o fim último da História.

    Não fica, no entanto, explicada a desigualdade existente entre duas ocupações (ou funções) determinadas nem a existência, ao longo da História, dos vários sistemas de estratificação. Nega-se, por outro lado, a existência de grandes agrupamentos sociais em oposição e conflito com outros grandes agrupamentos.

    Por outro lado, na teoria funcionalista (ou nominalista), a mobilidade social é o fenómeno mais importante da estratificação social contemporânea, já que, segundo os seus teóricos, a sociedade caminha para a distinção das pessoas unicamente com base no mérito e na capacidade de cada um (“meritocracia”). Ora, a teoria marxista desvaloriza a importância da mobilidade social, uma vez que continua a ser muito pequena e que o sistema de classes não é por ela posto em causa.

    Negar a existência das classes sociais é negar a luta dos contrários, é negar a luta de classes antagónicas e fundamentais. Negar a luta de classes é negar a própria existência do capitalismo e constitui a aceitação passiva e continuada da exploração do Homem pelo Homem, num sistema onde os indivíduos seriam desprovidos de consciência.

    Tal concepção imposta pela ideologia da classe dominante pretende abafar as lutas sociais e aumentar o seu poder político e económico.

    A teoria classista marxista permite-nos compreender não apenas o funcionamento do neo-capitalismo actual como nos fornece uma resposta clara à destruição do sistema vigente: à união do proletariado e de todos os trabalhadores, corresponderá a construção revolucionária do socialismo, rumo ao comunismo.

    BIBLIOGRAFIA:
    Engels, Friedriche. “Princípios Básicos do Comunismo”. Trad. Álvaro Pina e outros. Lisboa: “Editorial Avante”, 1978.
    Gurvitch, Georges. “As classes sociais”. Trad. Sérgio Manuel Grácio. Lisboa: Iniciativas Editoriais (2ª edição), 1966
    Lénine, V. I. “Obras Escolhidas” em III Tomos. Lisboa: “Editorial Avante”, 1977.
    Marx, Karl. “O Capital”. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1970.
    Marx, Karl. “Salário, Preço e Lucro”. Trad. José Barata Moura. Lisboa : “Editorial Avante”, 2004.
    Marx, K. e Engels, F. “Manifesto do Partido Comunista”. Trad. Álvaro Pina. Lisboa: “Editorial Avante”, 1975.
    Marx, K. e Engels, F. “Obras Escolhidas”. Lisboa: “Editorial Avante”, 1982.
    Mleireles, H. E outros. “Notas de Estudo para a Ciência Política”. Coimbra, 1976/77.
    Vilhena, Vasco de Magalhães. Artigo” Karl Marx: a teoria, força material” in “O Militante”, Set-Out. 2004. Lisboa: “Editorial Avante”.
    Wesotowski, Wtoodzimierz. “Classes, Estratos e Poder”. Trad. Almir Gonçalves. Venda Nova-Amadora: Novo Curso Editores (1ª edição), 1977.
    http://www.culturabrasil.org/antiduhring.htm
    http://www.marxists.org/portugues/

    1-VILHENA, Vasco de Magalhães. Artigo.
    2-Idem.
    3-Idem.
    4-, K. « Introdução à crítica da filosofia dodireito de Hegel », 1843 - http://www.marxists.org/portugues/marx/1844/criticafilosofiadireito/introducao.htm
    5-VILHENA, Vasco de Magalhães. Artigo.
    6-K. « Introdução à crítica da filosofia dodireito de Hegel », 1843 - http://www.marxists.org/portugues/marx/1844/criticafilosofiadireito/introducao.htm
    7-MARX, K. e ENGELS, F. « Obras Escolhidas »., Tomo I (« A Ideologia Alemã", 1845)- http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/cap2.htm#i9
    8-Marx, K. “O Capital” (Prefácio da 1ª edição, 1867), Tomo I - http://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapital-v1/prefacioseposfacios.htm#posfacio1873
    9-ENGELS, F. « Anti-Dühring » - http://www.culturabrasil.org/antiduhring.htm#du19
    10-ENGELS, F. « Anti-Dühring » - http://www.culturabrasil.org/antiduhring.htm#du19
    11-MARX, K. e ENGELS, F. « Manifesto do PartidoComunista ».
    12-WESOTOWSKI, Wtodzimierz. « Classes, Estratos e Poder ».
    13-MARX, K. e ENGELS, F. « Manifesto do Partido Comunista »
    14-MARX, K. e ENGELS, F. « Manifesto do Partido Comunista »
    15-MARX, K. e ENGELS, F. « Obras Escolhidas, Tomo I ("A Ideologia Alemã", 1845) - http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/cap2.htm#i9
    16-GURVITCH, Georges. « As classes sociais ».
    17-MARX, K. e ENGELS, F. « Obras Escolhidas, Tomo I ("A Ideologia Alemã", 1845) - http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/cap2.htm#i9
    18MARX, K. « Introdução à crítica da filosofia dodireito de Hegel », 1843 - http://www.marxists.org/portugues/marx/1844/criticafilosofiadireito/introducao.htm
    19-MARX, K. e ENGELS, F. « Manifesto do Partido Comunista »
    20-MARX, K. « O Capital», Tomo I (Cap.VII) - http://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapital-v1/index.htm
    21-MARX, K. « O Capital», Tomo I (Cap.VII) - http://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapital-v1/index.htm
    22-LENINE, V.I. « Obras Escolhidas », Tomo III (« A Revolução proletária e o Renegado Kautsky ») - http://www.marxists.org/portugues/lenin/index.htm
    23-MARX, K. e ENGELS, F. « Obras Escolhidas », Tomo I ("A Ideologia Alemã", 1845) - http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/cap2.htm#i9
    24-MARX, K. e ENGELS, F. « Obras Escolhidas », Tomo I ("A Ideologia Alemã", 1845) - http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/ideologia-alema-oe/cap2.htm#i9
    25-LENINE, V. I. « Obras Escolhidas », Tomo III (« A Revolução proletária e o Renegado Kautsky ») - http://www.marxists.org/portugues/lenin/index.htm
    26-GURVITCH, Georges. « As classes sociais ».
    27-Idem.
    28-MARX, K. e ENGELS, F. « Manifesto do Partido Comunista »
    29-LENINE, V. I. « Obras Escolhidas », Tomo III (« Uma Grande Iniciativa ») - http://www.marxists.org/portugues/lenin/index.htm
    30-MEIRELES, H. e outros. « Notas de estudo para a ciência política ».
    *Docente (do Instituto Camões) na Université Stendhal-Grenoble III

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