terça-feira, 29 de maio de 2007

Cruzada da Nova Evangelização

Ao mesmo tempo que a Igreja pretende “ser reconhecida apenas pelos aspectos espirituais da sua presença no mundo (…) o Vaticano reforçou as suas ligações às estruturas capitalistas dominantes e transportou para as organizações eclesiásticas o modelo de organização neoliberal”, lançando “nos seus próprios terrenos de acção redes laicas tentaculares, aliando o lucro e a fé e articulando os poderes político, económico e religioso”

Jorge Messias

A teologia cristã define-se a si mesma como uma exposição racional do transcendente. Esta preocupação da racionalidade do pensamento católico vem desde o século IV, exprime-se através de centenas ou milhares de escritos e documentos que integram a Tradição da Igreja e procura, sobretudo, transportar para os dogmas contemporâneos o princípio da não contradição. A Igreja defende a sua unidade, por isso não se contradiz. Mas reformula as teses antigas em novos enunciados, num discurso que procura ser moderno e sensível aos sucessivos patamares que o pensamento laico alcançou ao longo dos tempos. É a esta tentativa de readaptação do passado ao presente que o Vaticano chama racionalidade e modernidade teológica.

A Cruzada da Nova Evangelização (CNE) respeita esta prática secular da hierarquia da igreja. Trata-se de uma importante síntese dos conteúdos contidos em todos os grandes capítulos da doutrina católica. Por isso, toda a teologia política da igreja se encontra profundamente reflectida neste documento estratégico global do Vaticano. Cada um dos seus novos postulados encobre ideias arcaicas. Excepção feita à área da organização social, onde a CNE depressa abandona a retórica fundamentalista para se tornar em perigosíssimo instrumento oculto nas pregas de uma roupagem pastoral e com objectivos políticos e económicos bem explícitos.

Foi a partir do termo da II Guerra Mundial e dos inícios da “guerra-fria” (sobretudo depois que o papa Pio XII, em 1949, excomungou os católicos comunistas, os sistema marxistas e todas as suas estruturas representativas de classe) que a validação racional do pensamento religioso se tornou preocupação permanente dos teólogos católicos. Mais tarde, no rescaldo do concílio Vaticano II e com as purgas dos activistas da Teologia da Libertação, as práticas da hierarquia religiosa endureceram. A igreja tinha perdido posições de privilégio que mantivera nos estados socialistas do Leste, nomeadamente nas repúblicas soviéticas e na Polónia. Em contrapartida, instalara-se nas igrejas ocidentais um modelo único de organização, centrado no reforço da autoridade eclesiástica, na identificação das hierarquias católicas com o assalto capitalista aos centros de decisão das sociedades do após-guerra e numa mística católica de Cruzada e reconquista cristã da Europa. É a partir de Pio XII que a Santa Sé começa a publicar aceleradamente as encíclicas sociais que constituem as bases doutrinais e teóricas da sua acção no mundo moderno. Paralelamente, o Vaticano “esquece” então, temporariamente, certas teses políticas impopulares, como as do absolutismo monárquico, do império teocrático ou da imposição do modelo da democracia cristã às nações europeias. Essas ideias são agora simples linhas de força na gramática social da igreja, presentes e emudecidas mas não apagadas.

Para melhor atingir as suas verdadeiras metas, a hierarquia obrigou-se, naturalmente, a adoptar uma imagem de afastamento e isenção relativamente aos interesses materiais da política e do mundo dos negócios. Quer ser reconhecida apenas pelos aspectos espirituais da sua presença no mundo. Porém, subterraneamente, o Vaticano reforçou as suas ligações às estruturas capitalistas dominantes e transportou para as organizações eclesiásticas o modelo de organização neoliberal, enquanto lançava (e continua a lançar) nos seus próprios terrenos de acção redes laicas tentaculares, aliando o lucro e a fé e articulando os poderes político, económico e religioso. Se o Vaticano II proclamou nas suas Constituições a opção preferencial pelos pobres, a escolha real da hierarquia católica foi, desde sempre, a inversa da conciliar. Surgiram assim por todo o mundo instituições privadas de âmbito caritativo, financeiro, político, associativo, de desenvolvimento, assistencial, etc., de obediência católica – as IPSS, as ONGS, as associações de famílias, as misericórdias, os hospitais particulares, as universidades e colégios confessionais, as mutualidades, etc. – uma fina teia que cruza as utopias religiosas com os interesses das instituições financeiras supranacionais ou com as políticas geoestratégicas das alianças imperialistas do grande capital. Um universo baptizado pela igreja com o nome de sociedade civil. Degraus de uma escada que uma vez percorrida conduzirá à aceitação global de um mundo novo (ainda que também velho e secular) talhado pelos mitos do aggiornamento, pela fatalidade da globalização económica, pela diabolização do campo inimigo, pela falsificação do léxico social, pela proclamação de uma paz podre entre a religião e a ciência, pela tentativa de desarmamento ideológico das massas, pelo descrédito da política e dos partidos ou pelas teses tresloucadas da reconciliação de classes, da morte da história, das liberdades sem conteúdos, da metanoia, etc.

Neste enquadramento, ganham novo interesse os grandes documentos escritos pelos papas e pelos concílios, reunidos em textos que, logo a seguir, entram na Tradição e são de acatamento obrigatório para o povo católico. Em toda essa extensa literatura sacra, o tempo e os valores religiosos não mudam, a igreja é glorificada, a razão e o pensamento humano mantêm-se como subsidiários da luz divina e apaga-se a humanidade nas suas lutas, sacrifícios, realizações e propostas. Só o que é conveniente conta.

Como corolário inevitável deste pensamento anti-histórico, imobilista e metafísico, dominante no Vaticano, a teologia eclesiástica reconhece existir no mundo real um capitalismo “civilizado” que a igreja aponta, arbitrariamente, como fonte válida de justiça e de progresso. Declara-o herdeiro da mensagem cristã. Designa-o como construtor de um futuro mundo livre. Numa nova divisão dos poderes religioso e económico, competirá à hierarquia católica o papel de “anunciar o Reino de Deus aos homens e denunciar os crimes da sociedade”. Mas esta fórmula é ousada e contém riscos desnecessários. Assim, logo que Ratzinger se sentou no Trono de S. Pedro, apressou-se a chamar a atenção dos povos para o facto de ser muito mais importante para a Igreja o anúncio do Reino de Deus e da Vida Eterna do que a acção de combate à fraude, à injustiça social e à exploração do homem pelo homem... Tudo isso pode ser ignorado.

É mais prudente. Não vá o Diabo tecê-las !

Norte/Sul e os Cinco Continentes

“O caminho faz-se caminhando“, dizia Escrivá de Balaguer, grande mentor do Opus Dei. E a verdade é que os atalhos traçados pelos papas desde os anos 40, foram difíceis, por vezes mesmo duros. Agora, é outra a situação.

Na década de 70, opunham-se no mundo dois blocos: o socialista e o capitalista. Nas sociedades, tinham-se gerado duas forças: a da pobreza e a da riqueza. Sobre o futuro da humanidade pairavam duas possibilidades: a guerra ou a paz. Também a Igreja se tinha constituído em dois partidos: o do reforço da autoridade e o da libertação dos povos e da própria igreja. Os bispos não se entendiam com os cardeais, nem o social com o sagrado. Havia uma revolta latente. A teologia escorregava para a esquerda enquanto o Vaticano caminhava para a bancarrota financeira. Perdera fortunas nos choques petrolíferos. Arruinara-se na falência do Banco Ambrosiano, com os escândalos de Marcinkus e no sorvedoiro de dinheiro exigido pelo financiamento secreto dos movimentos reaccionários clandestinos – polacos, russos, chilenos, cubanos, do IRA, dos “contras”, etc. Os papas acabaram por gastar o que tinham e o que não tinham. A situação geral do Vaticano era delicada e complexa.

Os cardeais escolheram, então, a solução mais fácil. Renderam-se aos mais fortes e esmagaram os mais fracos. Entregaram a uma comissão de grandes banqueiros privados a gestão das finanças da igreja, reconheceram ao Opus Dei a qualidade de Prelatura pessoal do papa, chamaram Ratzinger para dirigir as reformas do clero e para esmagar a perigosa Teologia da Libertação protocomunista. É com Ratzinger como guardião da Doutrina da Fé que surgem e se desenvolvem os dois critérios básicos da igreja da Nova Reconquista: a Sociedade Civil e a Cruzada da Recristianização, ao estilo da Companhia de Jesus: “Reza, comunga, sacrifica-te e sê apóstolo”.

A coabitação da igreja com o capitalismo florescente ganhou aspectos de aberta fusão. Era urgente instalar a Aldeia Global. Todo o poder do Estado devia ser rapidamente reduzido a cinzas, visto que a economia privada traduz, na sua essência, o modelo mais puro da Família Cristã. E compreende-se que seja preciso fragilizar e calar os partidos políticos, agitadores de má fé e, quando laicos, verdadeiros eixos do Mal. Por isso, a Nova Cruzada constituiu-se peça fundamental do desenvolvimento dos mercados de livre concorrência. Negócio é liberdade. Em breve os povos terão esquecido o Estado-Providência e uma aliança divina entre o capitalismo “puro”, a sociedade civil e a Igreja do Milénio, o virá substituir num mundo mais seguro onde, pela graça de Deus, os pobres serão naturalmente pobres e os ricos cada vez mais ricos. Tudo, em permanente ambiente de Paz e Reconciliação...

Para os racionalistas, ateus ou agnósticos, o quadro geral destas relações pode entender-se do ponto de vista da ambição confessional mas é excessivamente contraditório e não sugere um final feliz, quer para a igreja, quer para o grande capital: os dois parceiros mais matreiros que a história humana alguma vez joga com aquilo que tem. Mas a história, tal como o conhecimento, inscreve-se em avanços e recuos, em choques e contradições superáveis.

Não se pense que o capitalismo e o seu imperialismo são fases definitivas da história moribunda ou que estão para ficar...

  • Etiquetas: , ,