quarta-feira, 4 de julho de 2007

Sobre as Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal (I – 1935-1947)*

“A obra teórica e política de Álvaro Cunhal imprimiu de tal modo a sua marca no percurso de luta do PCP ao serviço dos trabalhadores, do povo e do país durante sete dezenas de anos que lhe conferiu a matriz da sua identidade própria e do seu projecto revolucionário”
Francisco Melo** - 29.06.07

Uma consideração objectiva do legado teórico de Álvaro Cunhal (de que aqui se apresenta uma pequena parte), não deixa dúvidas de que o seu estudo é uma das principais vertentes estruturantes da formação política e ideológica dos militantes comunistas, permitindo-lhes, por um lado, consolidar opções, fruto de experiências de vida diferenciadas, e, por outro lado, fundamentar consciente e racionalmente imprescindíveis convicções, ao mesmo tempo que recusar seguidismos acríticos, sempre redutores e isolacionistas.

Porém, a leitura e estudo da obra de Álvaro Cunhal não são apenas importantes para os militantes comunistas. São também indispensáveis para todos quantos queiram conhecer com verdade o que foi o fascismo, o que foi a resistência ao fascismo, o que foi a história do nosso país sob o regime fascista e o que foi o processo libertador do 25 de Abril e as suas realizações, quais foram as formas de que se revestiu a contra-revolução capitalista que tem conduzido o nosso país à ruína, à miséria dos trabalhadores e do povo, à perda da soberania e independência nacionais.

A obra de Álvaro Cunhal é, por isso, uma arma insubstituível para desmistificar a actual ofensiva anticomunista, que raia por vezes o mais grosseiro reaccionarismo, no seu duplo objectivo de, por um lado, ocultar, denegrir e mesmo criminalizar as concepções e a acção histórica dos comunistas na luta dos trabalhadores e do povo contra a exploração e a repressão fascistas e pela liberdade, pela democracia e pelo socialismo; e de, por outro lado, branquear e procurar reabilitar o regime fascista de perseguição, de terror e de morte.

Conhecer a obra de Álvaro Cunhal é fundamental ainda para todos quantos queiram estar na vida e agir de uma forma esclarecida, consciente e, digamos também, digna, pois ela é um exemplo e uma lição de dignidade humana.

Não querendo abusar da vossa paciência passarei apenas brevemente em revista os textos de Álvaro Cunhal reunidos neste I tomo das suas Obras Escolhidas, abrangendo o período de 1935-1947.

Os dois primeiros artigos, publicados na imprensa legal, quando Álvaro Cunhal acabara de fazer 21 anos, evidenciam já uma assimilação não livresca do marxismo, antes alicerçada numa reflexão própria, que irá desenvolvendo com a experiência e o estudo, e que será uma das características fundamentais que fará dele o maior pensador político do século XX em Portugal.

As suas cartas para a Internacional Comunista da Juventude (ICJ) revelam, por outro lado, o dirigente político juvenil, então empenhado na transformação da Federação das Juventudes Comunistas numa organização de massas, liberta de sectarismos, de acordo com as orientações do VI Congresso da Internacional Comunista da Juventude, realizado em Moscovo entre 25 de Setembro e 10 de Outubro de 1935, no qual participara. Tal objectivo só virá a encontrar expressão plena mais de uma década depois com a criação do MUD Juvenil, num caminho longo e difícil de que nos dão conta entre outros os seus informes ao III e IV Congressos do PCP.

Homem de cultura integral, Álvaro Cunhal plasmará os seus conhecimentos e o seu empenhamento político nas suas intervenções críticas — num contexto de uma ditadura fascista no plano interno e de um ascenso impetuoso do fascismo e do nazismo no plano internacional — em domínios como as artes plásticas e a literatura, como o patenteiam as cartas a Abel Salazar e os artigos publicados na Seara Nova em que polemiza com José Régio pela atitude deste, como mais tarde explicitaria, de «renúncia a resistir», de «recusa a olhar o mundo e os seus problemas», de «condenação desdenhosa daqueles que intervinham no combate»[1]. Em resumo: pela concepção de Régio, que poderíamos designar de autotélica, porque negadora de qualquer condicionamento social da finalidade da acção humana e da obra de arte.

É também naquele contexto e naquele tempo de dominação nazi-fascista que mergulham as suas raízes as reflexões, de cunho ético, humanista e sociológico, em que transparece uma surpreendente maturidade, sobre os intelectuais e sobre a responsabilidade histórica individual, sobre a situação das crianças e dos jovens, sobre a sexualidade e o amor, expressas nos artigos publicados em O Diabo e Sol Nascente.

O desencadear da Segunda Guerra Mundial levará Álvaro Cunhal, ainda em artigos publicados em O Diabo, a uma contundente crítica da demagogia e hipocrisia na justificação da guerra por parte dos seus protagonistas iniciais (Alemanha, França e Inglaterra) e a uma acesa polémica com Câmara Reys, director da Seara Nova, com cujos responsáveis cortara relações por estarem «a reproduzir e a valorizar as interpretações fascistas dos […] acontecimentos mundiais» [2] de então nas páginas da revista.

No ensaio O Aborto. Causas e soluções, com base numa concepção materialista da história, Álvaro Cunhal analisa as teorias sobre a população, a natalidade e o aborto como reflexos de diferentes etapas do capitalismo, passando depois para a consideração das causas económicas, sociais e morais do aborto, mostrando a «catástrofe» que o aborto clandestino representa e o carácter prejudicial, degradante e inútil da legislação repressiva nesta matéria. De passagem evidencia as vantagens alcançadas com a legalização do aborto na URSS. Finalmente, apoiando-se em dados estatísticos, mostra o «flagelo» do aborto clandestino em Portugal, defendendo a sua legalização, enquanto subsistirem as causas que a ele conduzem.

A participação de Álvaro Cunhal na reorganização do Partido empreendida em 1940-1941 vai fazê-lo emergir como dirigente político-partidário destacado, aplicando o marxismo-leninismo tendo em conta o concreto do fascismo em Portugal, integrado na conjuntura internacional da Segunda Guerra Mundial. A este respeito, uma prevenção deve desde já ser feita ad usum de apressados comentadores: o concreto é de ser entendido aqui não como um somatório de um empírico vivido (embora o contenha), mas como uma totalidade estruturada de determinações objectivas diversificadas, totalidade em movimento resultante da resistência e da luta das suas contradições internas. Luta que, porque humanamente mediada, é susceptível de configurações históricas em aberto, mas não arbitrárias porque inscritas dentro das possibilidades reais. É esta profunda compreensão da dialéctica materialista que faz com que a acção política de Álvaro Cunhal seja incompatível com qualquer prossecução pragmática do êxito imediato ou com qualquer crença reconfortante num desenrolar teleológico da história, automática ou mecanicamente submetido a uma finalidade.

Esclarecido isto, prossigamos então com a análise dos seus escritos. Os informes ao III Congresso, realizado em finais de 1943, procuram apreender o desenvolvimento do fascismo e da luta pelo seu derrube e intervir nesse desenvolvimento com base na experiência adquirida, por um lado, com a reorganização do Partido e com a luta de massas (em que se destacam as greves de Outubro-Novembro de 1942 e mais ainda as de Julho-Agosto de 1943 em que o Partido se assumiu como a vanguarda da classe operária); experiência adquirida, por outro lado, com os esforços para unir todas as forças progressistas e patrióticas do país na luta contra a política de traição nacional do fascismo.

E assim, reflectindo e simultaneamente modelando o Partido pela intervenção prática e teórica (em que a componente crítica e autocrítica está sempre presente), Álvaro Cunhal assume-se como a sua expressão cada vez mais plena e carismática. Com o III Congresso, o partido da classe operária e dos trabalhadores portugueses, o partido conglomerador de todos os antifascistas, o partido da luta pela liberdade, pela democracia e pela independência dos povos, começa a forjar um património político que perdurará para o futuro.
Publicam-se em seguida neste I tomo dois conjuntos de cartas.

O primeiro revela-nos a intervenção constante e directa de Álvaro Cunhal na organização, no funcionamento e na concepção do Conselho Nacional de Unidade Antifascista, depois designado por MUNAF (cuja criação é divulgada em Janeiro de 1944), Conselho Nacional concebido como um amplo movimento unitário virado para o trabalho de massas e agindo articuladamente com a luta das classes trabalhadoras para a «criação da situação insurreccional, no decurso da qual o fascismo seria derrubado pela força» e instaurado na sequência desse derrube assim conseguido um «Governo Nacional Democrático».

O segundo conjunto de cartas, escritas ao longo de 1944, evidencia a importância com que eram encaradas as relações com a Organização Comunista Prisional do Tarrafal (OCPT), de que faziam parte destacados quadros do Partido, aos quais ele transmite clandestinamente, ultrapassando a distância e as rigorosas condições de isolamento, uma informação pormenorizada de todos os aspectos da actividade político-partidária.

O ano de 1945 ficou marcado no plano sindical pelo facto de, pela primeira vez desde a dissolução dos sindicatos livres em 1933-1934, seguindo a orientação do Partido, os trabalhadores terem acorrido em massa às eleições para os Sindicatos Nacionais logrando alcançar a eleição em dezenas de sindicatos de direcções de homens honrados. Álvaro Cunhal, assinalando esse facto, analisa também as deficiências verificadas com vista à concorrência a futuras eleições.
Da participação de Álvaro Cunhal no IV Congresso, realizado em 1946, dão-nos conta os dois informes que apresentou: O Caminho para o Derrubamento do Fascismo e Organização. Publicamos também neste I tomo o extenso Prefácio que escreveu, em 1997, para a reedição do primeiro informe por permitir uma compreensão plena da importância histórica do IV Congresso, no qual encontraram uma definição paradigmática, permitindo projectá-las para a actualidade, características identitárias do PCP e do seu projecto político de transformação revolucionária da sociedade.

Quando da realização do Congresso, o fascismo fora derrotado na guerra, mas assistia-se, por parte dos países capitalistas, ao desencadeamento de uma nova ofensiva anticomunista que se traduzia em Portugal no apoio à ditadura salazarista ao serviço dos monopolistas e latifundiários, agravando a dependência económico do país. Ao analisar essa situação, o informe político de Álvaro Cunhal veio pôr claramente a nu a ligação indissolúvel no nosso país entre a luta pela liberdade e a democracia e a defesa da independência nacional. É uma tese que conserva plena validade nos nossos dias.

Ao acentuar que «Salazar e a sua camarilha pela força e só pela força se têm mantido no poder» e que portanto «para os derrubar será preciso o emprego da força» — entendendo-se por tal um «levantamento nacional», uma «insurreição nacional contra o fascismo» -, Álvaro Cunhal, ao mesmo tempo, rejeitava veementemente as concepções que entendiam por emprego da força um golpe militar putschista ou uma «revolução de palácio», desligados das lutas de massas. Simultaneamente desmistificava a passividade, o «atentismo», dos que, no movimento democrático, esperavam de acções exteriores por parte das democracias burguesas o «milagre» da queda da ditadura fascista, assim como não poupava as propostas dos que, no próprio Partido, apontavam como sendo objectivo deste «a desagregação do fascismo» de que resultaria uma «queda pacífica de Salazar». Era a «política de transição», alvo de uma intensa crítica de Álvaro Cunhal como concepção direitista, de abdicação da revolução e de destruição do Partido como organização política autónoma e de classe, como vanguarda revolucionária da classe operária e de todos os trabalhadores. A crítica do oportunismo feita no IV Congresso mantém plena actualidade, pois ele espreita sempre em cada curva da história como a experiência tem demonstrado.

Os informes de Álvaro Cunhal mostraram a importância das organizações unitárias quando estreitamente ligadas às massas e actuando como organizadoras e impulsionadoras da acção das próprias massas. No caso da luta sindical, tal orientação permitiu significativos progressos na concretização da linha definida no III Congresso de «converter os Sindicatos Nacionais, de organismos defensores dos interesses do patronato, em organismos defensores dos interesses da classe operária» e apontar a perspectiva da «criação dum movimento sindical unificado à escala nacional». Foi a arrancada histórica para a ulterior formação de um movimento sindical nacional de classe, independente, democrático e unitário, que hoje continua a resistir e a lutar em defesa dos interesses dos trabalhadores e do país.

Os textos de Álvaro Cunhal mostram-nos como, além da justeza da linha política, o reforço das organizações de base e da ligação destas à Direcção central e às massas tiveram — e a experiência mostra-nos que continuam a ter — um papel fundamental no desenvolvimento da luta da classe operária, das massas populares e da unidade democrática, no alcançar de êxitos na acção política e no aumento da influência do Partido.

De grande significado e importância se revestiu a caracterização do «centralismo democrático» de acordo com a experiência histórica do Partido. Como Álvaro Cunhal acentua no Prefácio, aos «quatro elementos» clássicos são acrescentados «o direito dos militantes do Partido discutirem democraticamente toda a orientação», a crítica e autocrítica são consideradas «uma base fundamental de trabalho», é estabelecida a obrigatoriedade da «prestação de contas» e de «formas democráticas de trabalho sempre que não colidam com o trabalho conspirativo», a «disciplina de ferro» é associada aos direitos democráticos dos militantes e é conferido o valor de princípio à «ligação às massas sem partido». O Partido surgia assim como «Partido leninista definido com a experiência própria», tal como hoje continua a suceder, em que a direcção colectiva e o trabalho colectivo se tornaram traços distintivos e determinantes do estilo de trabalho do Partido e que encontrariam a sua plena expressão enquanto integrantes do conceito de «colectivo partidário».

No informe sobre Organização, Álvaro Cunhal lembra que qualquer militante «pode e deve, por via da organização, participar na elaboração da linha política e táctica do Partido», que «dentro do Partido são admitidas divergências de opinião», sendo estas «mesmo vantajosas para o Partido, quando se manifestam dentro das normas orgânicas do Partido». Mas eram excluídos evidentemente, para «defesa da unidade do Partido», a existência de «todos e quaisquer grupos, formados dentro do Partido, à base de “linhas políticas próprias”, ou “plataformas políticas”, ou concepções próprias de trabalho»; eram excluídos «todos e quaisquer grupos formados dentro do Partido à volta deste ou daquele camarada.”» A história comprovou a justeza destas orientações.

Passado um ano, Álvaro Cunhal vai apresentar ao Comité Central um extenso informe intitulado Unidade, Garantia da Vitória no qual submete a pormenorizado exame a ofensiva imperialista anglo-norte-americana, apoiada pelo Vaticano, e a política de alinhamento de Salazar com ela para se manter no poder.

A política económica do salazarismo é em seguida analisada, concluindo-se que ela condenou o país ao atraso e, «protegendo os lucros fabulosos, entregando a agricultura, os transportes, os abastecimentos, aos monopólios corporativos, intensificando a exploração das classes trabalhadoras, espoliando o pequeno produtor, reduziu a produção, deu campo livre à alta dos preços e ao mercado negro.» Por outro lado, em vez da «aplicação dos proventos do Estado em obras reprodutivas, o salazarismo absorveu-os na constituição de um gigantesco aparelho repressivo, na propaganda, nas conspiratas com a reacção internacional, na burocracia, na corrupção que invade os organismos do Estado». Acresce que também «as reservas monetárias, em vez de aplicadas no apetrechamento técnico da nossa agricultura, indústria, transportes» foram aplicadas na importação de «géneros de primeira necessidade, concorrendo com a produção nacional». E, conclui Álvaro Cunhal, com a continuação dessa política, «a economia nacional tem diante de si perspectivas de uma grave crise e duma intervenção cada vez maior do capital estrangeiro, reduzindo a uma imagem literária a independência portuguesa».

Por tudo isso, «a nação está contra Salazar», diz Álvaro Cunhal. E porque o está, ele «não concede liberdades nem convoca eleições livres» ao mesmo tempo que «procura atrair os elementos mais vacilantes» do campo democrático e «mostrar que os comunistas são o único obstáculo à concessão das liberdades e à intervenção dos outros democratas na vida política» com o objectivo de «quebrar a unidade democrática» e de criar uma «oposição inofensiva». Não sem «alguns sucessos», o que revela a existência de perigos para a unidade e para os quais Álvaro Cunhal adverte.

A última parte do informe é dedicado ao Partido. Três aspectos fundamentais são considerados: «o seu fortalecimento ideológico», «a sua consolidação orgânica», e «o desenvolvimento dos quadros.

Abordaremos apenas o primeiro aspecto.

Álvaro Cunhal começa por fazer uma explanação sobre «a autêntica revisão do marxismo» empreendida por Browder, secretário-geral do Partido Comunista dos Estados Unidos, proclamando o fim da luta de classes e do imperialismo e preconizando a dissolução dos partidos operários. Analisa depois «tendências paralelas» ou opiniões baseadas nas de Browder no nosso Partido, concluindo pela necessidade «duma extrema vigilância política e da fidelidade aos princípios do marxismo-leninismo».

De seguida é retomada e desenvolvida a crítica à «política de transição» feita no IV Congresso, procurando-se agora pôr «verdadeiramente a nu a raiz oportunista dessas concepções», a sua filiação numa «análise não-marxista da situação» de modo a impedir que essas concepções renasçam.

É com considerações sobre o marxismo-leninismo que Álvaro Cunhal encerra este ponto, acentuando que ele «é uma ciência ligada à vida e às condições de lugar e de tempo, uma ciência que se enriquece com novas experiências e novos conhecimentos», não nos dando pois «receitas para cada situação difícil». É por isso imprescindível, acentua, que o «estudo dos teóricos do marxismo seja acompanhado pelo estudo da realidade portuguesa» e «com a preocupação constante da tarefa que os comunistas portugueses têm diante de si». A exigência do estudo concreto da realidade portuguesa em conexão com os objectivos do derrube do fascismo e da transformação revolucionária da sociedade significa a total rejeição quer do dogmatismo, incapaz de apreender o movimento do real, quer do oportunismo, que Engels, na sequência aliás do Manifesto, lapidarmente definiu como o «abandonar do futuro do movimento por causa do presente do movimento» [3].

Transcrevem-se a seguir no presente tomo dois textos de Álvaro Cunhal sobre as greves de Abril de 1947 dos operários das construções e reparações navais.
No primeiro, em que se debruça sobre os problemas de orientação, começa por salientar «a vitória que constituiu, para os operários de Lisboa e para o PCP, a greve de Abril», passando em seguida a fazer uma apreciação crítica das orientações do Partido face ao evoluir da greve.

No segundo, dedicado às questões de organização, Álvaro Cunhal mostra como «a condução dum movimento de massas exige a existência de organismos capazes de acompanhar a situação e dirigir as massas em todas as fases do movimento» As deficiências verificadas neste campo não permitiram «assegurar a direcção diária da greve, sobretudo a partir do momento em que o fascismo encerrou fábricas, prendeu operários, espancou manifestantes e fez cair sobre as massas uma violenta repressão».

No texto intitulado «Notas à margem do trabalho de Vilar: o Latifúndio e a Reforma Agrária» Álvaro Cunhal considera o trabalho de Fogaça (Vilar) de grande importância e de leitura obrigatória para «os camaradas responsáveis do Alentejo, Ribatejo e Trás-os-Montes».

Contudo, dispondo de um conhecimento teórico e metodológico muito mais sólido das questões agrárias, Álvaro Cunhal aponta logo de início a principal deficiência do estudo de Fogaça: a de que «não é dada uma ideia clara da diferença entre latifúndio e grande exploração capitalista, não se apresenta o papel do latifúndio no desenvolvimento do capitalismo, nada se diz dos progressos do capitalismo na agricultura portuguesa». «E de tudo isto resulta que não são expostas ideias claras e justas sobre a grande e a pequena exploração agrícola», que Álvaro Cunhal considera «um problema fundamental» quando se trata da reforma agrária.

Além dos textos referidos, representativos das diferentes fases e diversas facetas da produção teórico-política de Álvaro Cunhal, todos assinados com o seu nome ou com pseudónimos, incluem-se no presente tomo outros não assinados por si ou mesmo subscritos por organismos dirigentes do Partido, mas que sabemos por testemunhos escritos inquestionáveis serem de sua autoria. Ao inseri-los como Anexos apenas pretendemos assinalar essa diferença formal [4].

Também sobre cada um deles queremos fazer aqui uma breve referência.

No primeiro, intitulado O Partido Comunista ante Algumas Tendências Prejudiciais dentro do Movimento de Unidade Democrática, são retomadas, à luz de casos então verificados, as críticas a tendências oportunistas no Movimento de Unidade Democrática (MUD) feitas no IV Congresso e noutros documentos. Álvaro Cunhal refere, nomeadamente, a «velha e prejudicial tendência» para esperar a «queda automática» do fascismo, a qual se manifesta-se na «elaboração de grandes planos para depois» com a consequente distracção das «atenções dos problemas presentes, criando ilusões de que o fascismo cairá sem ser por nossa acção e levantando elementos de divergências e desentendimentos» entre as forças antifascistas, os quais analisa em concreto.

As células de empresa, surgidas na sequência da reorganização de 1940-1941, viriam a ocupar um lugar central na organização e actividade do Partido. A obra A Célula de Empresa, publicada pela primeira vez em 1943, enquanto síntese da experiência de organização e de luta do Partido, tornar-se-ia emblemática na história do Partido. Álvaro Cunhal começa por abordar a célula de empresa na decorrência da concepção leninista do Partido e da natureza de classe deste: Partido da classe operária é nos locais de trabalho que se situa a sua organização básica — a célula de empresa. Passa em seguida a uma análise pormenorizada, feita de forma pedagógica, da estruturação das células de empresa, do seu funcionamento interno, da sua ligação com as lutas reivindicativas, que lhes compete «impulsionar e dirigir», da sua ligação com a luta sindical, da sua ligação com o Movimento de Unidade Democrática, etc. A concluir, Álvaro Cunhal detém-se na questão do recrutamento, nos cuidados a observar na admissão de novos militantes, na defesa da repressão observando as regras conspirativas.

Em síntese: à célula de empresa cabe «orientar, comandar as batalhas que os trabalhadores da empresa travam contra os patrões, contra as formas de exploração e dominação do capitalismo, contra a miséria e o terror do salazarismo».

Em O Partido Comunista, os Católicos e a Igreja, Álvaro Cunhal começa por lembrar que o «Partido Comunista, ainda que tendo como base teórica o materialismo dialéctico, entende que as convicções religiosas, por si só, não são susceptíveis de afastar os homens na realização de um programa social e político e que, desta forma, comunistas e católicos podem e devem unir-se em defesa dos seu anseios comuns, em defesa dos interesses e aspirações dos deserdados e ofendidos, do povo e do país». E pergunta: qual a resposta que os católicos têm dado a esta posição do Partido? «Aqui há que distinguir», diz Álvaro Cunhal, entre, por um lado, «os trabalhadores católicos, assim como muitos católicos progressistas, particularmente jovens» que «têm compreendido a necessidade desta união e têm engrossado a frente da luta pelo pão, pela liberdade, pelo progresso e pela independência»; e, por outro, a Igreja Católica que «pela boca dos seus mais autorizados representantes» tem intervindo activamente «ao lado da ditadura fascista contra as aspirações democráticas do povo português». É esta intervenção da Igreja Católica que passa então a historiar com abundância de exemplos tirados das declarações do seu mais alto representante, o Cardeal Cerejeira, e das palavras da imprensa regional católica, nos últimos anos.

Afirmando em seguida que o «apoio que a Igreja dá a Salazar deriva também de instruções vindas de Roma», Álvaro Cunhal cita vários exemplos dessas instruções, integradas na política externa do Vaticano, a qual mostra caracterizar-se «pela pregação e preparação activa da cruzada anti-soviética, pela luta contra todas as realizações democráticas, pela defesa do fascismo sobrevivente e preparação da sua revanche».

Depois de pôr a descoberto a hipocrisia e a falsidade das proclamações da política social da Igreja, dirige-se aos católicos: «Se temos aspirações comuns, devemos agir em comum para a sua realização.» E termina, voltando-se para o futuro: «O nosso desejo é que, na obra de reconstrução democrática de Portugal, não haja convicções religiosas nem ideias filosóficas que afastem os homens e prejudiquem o seu esforço conjugado para assegurar ao nosso Povo e à nossa Pátria dias melhores e mais livres.»

A obra teórica e política de Álvaro Cunhal imprimiu de tal modo a sua marca no percurso de luta do PCP ao serviço dos trabalhadores, do povo e do país durante sete dezenas de anos que lhe conferiu a matriz da sua identidade própria e do seu projecto revolucionário. Esta identidade e este projecto, ao terem mostrado ser capazes de resistir e afirmar-se contra ventos e marés adversos da história, constituíram-se em património inalienável do Partido a que Álvaro Cunhal dedicou a sua penetrante inteligência, a riqueza da sua multifacetada personalidade e a sua inexcedível capacidade de trabalho.
Esse património, ao perviver e frutificar no quadro duma globalização capitalista rapace e terrorista, substancia uma responsabilidade iniludível do PCP, na medida em que dá um alcance internacional, não obstante as suas originalidades e particularidades, à sua experiência histórica de transformação revolucionária da sociedade. Preservar esse património, desenvolvendo-o e enriquecendo-o, é a melhor prova do nosso reconhecimento, da nossa fidelidade à mensagem mais profunda de Álvaro Cunhal: que é sermos capazes de, teórica e praticamente, enfrentarmos e superarmos os tremendos desafios que hoje se nos colocam. Intervindo hoje, tal como ontem, tal como amanhã, na dialéctica objectiva da história. Revolucionariamente.

Notas:
[1] Álvaro Cunhal, A Arte, o Artista e a Sociedade, Editorial Caminho, Lisboa, 1996, p. 96.
[2] Arquivo Militar Especial, Lisboa, processo n.º 214/40.
[3] Ver F. Engels, Para a Crítica do Projecto de Programa Social-Democrata de 1891, in K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, t. 3, 1985, p. 484. Já no Manifesto do Partido Comunista Marx e Engels tinham acentuado como característica distintiva dos comunistas o facto de que «no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento» (ver K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, Edições «Avante!», Lisboa, 2.ª edição, 1997, p. 71.).
[4] Se Fores Preso, Camarada (1947) é um texto igualmente de Álvaro Cunhal que publicaremos no tomo II das Obras Escolhidas, de acordo com o critério que adoptámos de publicar a versão mais recente de uma obra desde que feita pelo seu autor originário.


* Este texto foi escrito para o lançamento do tomo I (1935-1947) das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, em Lisboa, 6 de Março de 2007.

** Ensaísta e director da Editorial Avante



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