sábado, 4 de agosto de 2007

A rota da grande dissidente

Foi dado à estampa um livro da autoria da actual vice-presidente do Grupo parlamentar do PSD, Zita Seabra, cujo título, «Foi Assim», (O «F» carcomido dá a ideia de uma foice destruída…), sobressai a vermelho numa capa impressa com o jornal Avante! esbatido. No topo, a autora, proprietária da editora da sua obra, aparece numa fotografia, com o ar aguerrido da juventude, de punho erguido, e uma auréola com a foice e o martelo. Uma capa enganadora, como aliás toda a sua personagem, que se vai retratar num livro de recordações ao sabor de intenções inconfessadas, cujo percurso acaba em 1989, quando se fina a sua identidade comunista e começa outra, antagónica da primeira.

Se o galo eriça as penas, é mais fácil depená-lo.
(Provérbio tibetano)

O lançamento da obra decorreu, com um evidente simbolismo, no Quartel do Carmo, com a presença de importantes personalidades, entre outras, Mário Soares e Maria Barroso, J. Pacheco Pereira, Carlos Gaspar, Marques Mendes, César das Neves, Vasco G. Moura, Bagão Félix e Santana Lopes. Teceram-se os maiores encómios à obra (Público, 6 de Julho). Que é um livro de uma verdade absoluta e transparente, diz Mário Soares. Que nas memórias da amiga «não há uma gota de culpa», diz Pacheco Pereira, em relação à «instituição», para não soletrar «PCP». Gaspar, pelo seu lado, fala que «a menina romântica com péssimas leituras»( Marx, Lenine, Engels e outros autores subversivos, proibidos pelo fascismo?) conta no livro «a história de uma ruptura, tanto mais dura e brutal, por ser solitária», destacando «a coragem como fio condutor da obra».
E ela, Zita, rodeada de ilustres, com os pés enfiados nuns bonitos sapatos vermelhos, relíquia colorida da anterior encarnação, agradece a todos e apenas lamenta, em patético acto de contrição, o sofrimento que deu aos seus pais, desventura do seu inconsequente roteiro comunista. Regressada à classe burguesa de origem, convertida em professa anticomunista, está à vontade entre os seus.
Por sua vez, Vasco Pulido Valente, o conselheiro redactorial e revisor de provas, presente espiritualmente, oferece na contracapa, «à sempre cândida» Zita Seabra, o seguinte laudo lapidar: «É o livro que faltava para perceber a grande tragédia do comunismo português».
Dizemos nós, em contraponto, desde já: a afronta odiosa que «Foi Assim» transporta contra o Partido Comunista, é de tal monta que os antigos inquilinos do Carmo, depostos no 25 de Abril, teriam gostado muitíssimo, se ainda cá estivessem, de marcar o evento com a sua presença!
O mínimo que se poderá dizer de Zita Seabra é que é uma personalidade contraditória. Onde está a verdade da pessoa, o seu valor real, cara ou coroa? No período de 22 anos em que assume uma militância comunista, desde a adolescência sacrificada até aos 39 anos de idade, dirigente ainda do PCP? Ou na pessoa que vai nascer em 1989, e diz a si própria e aos outros, como uma revelação: «não sou comunista». A sua cotação real estará no valor facial ou no valor da troca, ao afirmar-se como anticomunista, como dirigente política de direita? «Foi assim» é, contra as aparências de um depoimento realista, um texto basicamente de ficção: a narradora conta o seu passado para o reinventar, desacreditando-o. É uma caricatura grotesca e anedótica da clandestinidade como clausura contrariada, a deturpação política intencional da vida partidária e do papel do PCP na Revolução de Abril, etc.. Filhas e genros, diz Zita nos «Agradecimentos», «foram ouvindo (estas) histórias e rindo delas»… Eis a seriedade postiça exibida num descuido. O maior erro na apreciação que se poderia fazer do livro de Zita é considerá-lo o testemunho objectivo da sua vida no Partido Comunista, ou o acto sincero de uma ajuste de contas com o passado, ou a narrativa factual de acontecimentos políticos em que participou, ou o ajuizar isento sobre pessoas com quem partilhou a militância comunista. Nada de mais falso. Logicamente, é o que tentam os seus amigos políticos, ao elogiar a peça e a personalidade…
O sujeito narrador do texto aparece numa entremeada confusa de enunciados em que alterna o sintagma nominal «nós comunistas» com o verdadeiro «eu» da pessoa, o qual se distancia, contraria, deturpa e renega a anterior ideologia e fidelidade. A primeira personagem, a Zita que milita no Partido, objecto da novela, está morta há quase vinte anos; a segunda, a Zita do PSD, verdadeira narradora, está bem viva e activa, posicionada no jet set da classe política, utilizando o know how do seu passado de militante de esquerda para agir como militante da direita. A reconversão passa pela ideologia e pela orientação política, mas a técnica é transferível com adaptações. O maior mérito de um dissidente é continuar a valer longamente como dissidente: o valor real como valor da troca. Há uma carreira de dissidente a título póstumo, como troféu, como exemplo para outros, como sinal que visa enfraquecer o adversário. Os antigos inimigos que acolhem o dissidente exibem-no como o bom exemplo a seguir, o representante da sensatez, do que deve ser: a moralidade pedagógica do regresso de um filho pródigo, a ovelha tresmalhada que volta ao redil, a conversão de uma infiel.
«Foi assim» é um texto de confronto político actualizado, um instrumento de propaganda contra o PCP e a ideologia comunista, um meio de alicerçar a sua carreira de militante da direita, de reforçar o seu prestígio no meio em que se situa. A autora age como inimiga do Partido, num posto ficcionalmente interior ao Partido, utilizando factos vividos e argumentos, num estilo que parece ser genuíno e natural, mas que é deliberadamente o do confronto politizado. Fim estratégico: desvalorizar, estigmatizar, ridicularizar e denegrir o PCP. Táctica: denunciar, expor pormenores, deturpar, caricaturar, montar cenários, desinformar, difamar, mentir. Principal ingrediente: a pessoa, a figura da arrependida, a pecadora que se confessa, servida por uma claque burguesa.
A autora está consciente deste truque e tenta controlar a informação. Quando a jornalista Fernanda Câncio (DN, 8/07/07), que a critica por assumir no presente a luta contra causas que eram suas, como o aborto, lhe faz a última pergunta, («Nos agradecimentos do livro está um monsenhor, o mote é uma frase bíblica, apesar de se dizer ateia de formação. Descobriu Deus, entretanto?»), a resposta é espantosa: «Sobre a minha vida depois de 1989 não quero falar».
Façamos a vontade a Zita Seabra. Vamos extrair conclusões da análise do processo que decorre em 1988 e culmina no seu afastamento do PCP.

Revisitar o «processo de afastamento»
de Zita Seabra do PCP

O correspondente em Lisboa da revista americana Newsweek dá conta, numa edição dos começos de 1989, do «processo Zita Seabra», numa notícia intitulada «Portugal: reform may be impossible». Aí se fala do livro, «O Nome das Coisas» de ZS (1.ª edição, Novembro de 1988), como um best-seller onde é revelado o carácter grotesco do seu julgamento secreto e expulsão («The grotesqueries of her secret trial and expulsion»). A nossa fonte é o próprio livro de Zita, que inclui uma fotografia da página da revista. Serve este exemplo para dar expressão à ampla informação à roda da pessoa, promovida em campanha como a grande vítima de uma espécie de saneamento interno cuja causa, a mais injusta, seria ter Zita desejado renovar, democratizar, revitalizar e modernizar o PCP. Ironia do destino, afinal a personagem viria a ser, já em 1989, uma inimiga feroz não só do Partido, mas de toda e qualquer versão da ideologia comunista, à qual faz um voluntarioso certificado de óbito, legitimando, a posteriori, todos os procedimentos que levaram à sua exclusão do PCP.
A frivolidade e o egocentrismo de ZS transparecem na sua inconstância de propósitos e inconsistência de argumentos. O leitor pode avaliar num relance o que aqui fica escrito. A propósito do trabalho na Comissão Política do CC do PCP onde é, diga-se, membro suplente, desde 1983, comenta com genuína franqueza: «Não conseguia continuar na Comissão Política, não me integrava nela e não queria lá estar (…), acumulava essa tensão com dúvidas seríssimas sobre a orientação do Partido, e o resultado foi que adoeci gravemente»(«Foi assim», p. 382). Esta referência merece um reparo pela ignorância crassa que revela na atribuição da etiologia da tuberculose à vida na Comissão Política… Mas esta mesma pessoa que estava farta e saturada, descontente, descrente, desmotivada, não considera a possibilidade de pura e simplesmente aceitar funções mais modestas e consentâneas. Por teimosia e espírito de contradição, sem verdadeira convicção, mas como reacção de orgulho diz: «Não cedi, eu era membro da direcção, da comissão política do Comité Central, tinha portanto direito de me bater pelas mudanças que achava necessárias no Partido» («Foi assim», p. 389).
Todas estas discordâncias transpiravam nos órgãos de informação, em grande profusão, ainda antes da edição do livro «O nome das coisas». Faça-se justiça, ZS reconhece agora, no seu «Foi assim», que agia à revelia da direcção e dos estatutos do PCP. Diz: «Vital Moreira jantava todas as quartas-feiras em minha casa. Todas as semanas, passávamos em revista a vida política nacional e a vida partidária. Conspirávamos efectivamente em minha casa, mas não em segredo». Do mesmo teor é o seu depoimento na Grande Entrevista da RTP 1, a Judite de Sousa: «Estava em plena dissidência, jantava tudo lá em casa». Em casa da «grande líder divergente», dizemos nós. Acrescente-se, cujo secretário-geral provisório e guia espiritual passou a ser Vital Moreira, sem dúvida… E dizia à Zita, imagine-se: «És a nossa Passionária!»(p. 395). Será possível?!
Depois de uma zanga com Álvaro Cunhal em que é criticada pelo seu nítido afastamento da linha e das normas estatutárias do PCP, ao ser confrontada com a sua mudança de gabinete (estava antes no 6.º andar na sede da Soeiro Pereira Gomes, em frente ao gabinete do Secretário Geral), reage com raiva incontida, que revela no livro: «Foi nesse dia que começou o meu processo. Para mim iniciou-se nesse dia uma dissidência com dois objectivos: democratizar o partido e mudar a sua linha política; acabar com PREC». Seria para reconquistar o gabinete do 6.º andar?! Diz depois Zita, para tirar dúvidas: «Continuava, porém, absolutamente fiel aos ideais, que tinha abraçado desde sempre, os ideais comunistas» («Foi Assim», p.388).
O processo do afastamento de Zita Seabra do PCP decorre por etapas. Um primeiro procedimento em reunião plenária do Comité Central afasta-a da função de suplente da Comissão Política, em Abril de 1988. Zita Seabra, ainda membro do Comité Central, publica a sua defesa no «Nome das Coisas» ( Editorial Inquérito, 1988), num tom pateticamente revolucionário, como quem detém a chave da salvação, in extremis, do PCP: «É por confiar no Partido, nos seus militantes e na nossa ideologia que hoje aqui, no Comité Central, que analisa o caso “Zita Seabra”, eu quero dizer-vos, camaradas, que me seria bem mais penoso estar aqui, dentro de algum (pouco) tempo, a ser julgada por ter assistido passivamente ao declínio sem remédio do PCP».
Vital Moreira, em eco, no livro «Reflexões sobre o PCP» ( Editorial Inquérito, 1990), faz a apologia emotiva da alegada vítima, põe as mãos no fogo pela sua nova pupila e afirma categórico: «Zita Seabra é a primeira vítima da luta pela renovação do Partido e pela superação da crise que, sem aquela, o conduzirá, a breve prazo, a um irreparável definhamento» (p. 60). O seu empenhamento político e jurídico na apologia de Zita foi de molde a transformar em «julgamento» um processo interno de um partido, indo ao extremo de considerar a acção da direcção do Partido como «character assassination», o que à vista do «carácter» revelado de ZS (traduta traditora), foi um erro crasso de diagnóstico do «advogado de defesa».
Enquanto Vital Moreira pretendeu com grande vitalidade «revitalizar o PCP» para impedir o seu «definhamento», Zita pretendia «salvá-lo do declínio». Não fundaram, nem refundaram nenhum novo partido comunista ou de esquerda. Vital Moreira contenta-se com os bons ofícios no PS, usando a sua fastidiosa e cerrada teoria da argumentação para defender as mais impopulares reformas neoliberais do governo de Sócrates. Zita assumiu-se na sua verdadeira pele, a nudez branca da verdade, a pele na qual diz sentir-se muito bem, estereótipo que repete sempre, para confirmar que traja a rigor pela direita.
Depois do afastamento da Comissão Política em Abril, ocorre em Novembro de 1988 o afastamento compulsivo do Comité Central (a sua expulsão do PCP, em Janeiro de 1989), justificado pela persistência nas mesmas acções anti-estatutárias e a publicação do livro «O Nome das Coisas», clara provocação («O livro era a guerra», diz ela em «Foi assim»), para obter a sanção como prémio por mau comportamento. A via da dissidência estava há muito em marcha, ninguém sabia ainda até que ponto. Todo o teatro sobre «violência», «perseguição», «punição», toda a campanha de difamação do Partido Comunista, visou capitalizar juros políticos para os adversários do PCP, à custa da pretensa ofendida.
Meditemos, por um instante, na seguinte frase sobre uma desejada evolução no Partido, pouco antes da muda da pele:
«Eu acreditei que é possível mudar, que é possível impedir a morte de um projecto colectivo e revolucionário de sociedade que foi e é o nosso sonho, tão grande que alguns lhe dedicámos não uma parte da vida, mas a “nossa vida”»( «Nome das Coisas» p. 45 ).
Sabendo como todos sabemos do amplo apoio de que Zita beneficiou, do Grupo dos Seis, do INES, do José Milhazes, de Pacheco, de Soares e dos Media, espanta-nos sobremaneira a desfaçatez de ZS quando diz a Judite de Sousa no programa Grande Entrevista, com fingida autocomiseração: «Saí só, fiz o percurso só, nem terceira, nem quarta via, um percurso muito sentido, só».

Não foi assim

O capítulo número 7 do livro é sintomático. Zita Seabra esteve pouco mais de cinco anos na clandestinidade. Destes anos, quatro anos são exercidos no apoio a casas clandestinas, papel indispensável na luta política, que ZS considera uma limitação e uma humilhação para si. Na sua entrevista no DN, em grandes parangonas, figura o título: «Fui uma mulher-a-dias do PCP». A menina-bem foi obrigada a aprender as tarefas domésticas, que agora retrata com o despeito. Ela queria a função de «revolucionária profissional», a função de dirigir e organizar, de liderar, primeiro a partir do aparelho clandestino, depois à luz do dia, em 26 de Abril de 1974.
Quando toma as rédeas da União de Estudantes Comunistas (UEC), em finais de 1972, põe em evidência o seu estilo muito próprio, como se sonda nas descrições: «Criei na UEC uma disciplina de exército...» (…) «Tinha uma enorme dureza face à hesitação, à dúvida ou ao medo» ( embora narre a sua experiência de horror quando lhe aparece um ratinho, não um PIDE, na cozinha da «casa do Partido» (p.122). (…) «Tinha a frieza de um revolucionário, era muito dura nas relações humanas (…) «Todos os militantes falavam de mim obrigatoriamente no “masculino”, era “o camarada”, para não se perceber que a “controleira” era mulher», explica ( p. 187 e 188). Todas estas descrições da auto-denominada «verdadeira bolchevique» soam muito a «comunismo de caserna», a uma caricatura pequeno-burguesa do que é uma verdadeira disciplina, sem tiques autoritários, manipulações e dirigismos. Diz da «sua» UEC que «passou a ser uma espécie de tropa de choque do PCP»… E fica muito contrariada quando a organização é dissolvida e integrada nas Juventudes Comunistas.
Tive a oportunidade de privar mais de perto com ZS no Grupo Parlamentar do PCP, na primeira legislatura, entre 1976 e 1979. Muitos de nós a víamos como pessoa autoritária, super-protegida pelo presidente do Grupo Parlamentar, Carlos Brito, seu marido por muitos anos, pai das duas filhas, cuja existência como cônjuge é demasiado velada em «Foi assim». É o único dirigente do Partido que ZS elogia sistematicamente no livro, em toda a linha e em todos os parâmetros! Vá-se lá saber porquê, a sua progressão na carreira foi imparável, apesar do que muitos apontavam daquele estilo de fugir.
A preocupação em exagerar o seu papel, em atribuir a si própria feitos que não lhe cabem, é outra característica que sobressai no capítulo sobre o movimento estudantil.
A chefia da União de Estudantes Comunistas, após o 25 de Abril, gera-lhe a fantasia de que é uma grande personalidade: «Ali eu “era a Camarada”. Sabia que quando o diziam era eu.» Julga-se homologada a Álvaro Cunhal, «o Camarada», como uma espécie de grande guia da UEC, transvestida como o seu pequeno partido, numa liderança feita à pressa.
Diz, às tantas, que na Cidade Universitária (de Lisboa) «não tínhamos militantes». E acrescenta: «Em Medicina, por exemplo, tínhamos um». Rematadas falsidades, disfarçadas por não mencionar o ano a que se reporta. Na Faculdade de Medicina havia uma célula da Organização Estudantil do PCP, anterior à fundação da UEC, em 1971. Aliás, é um militante do PCP da Faculdade de Medicina, em representação de outros, que estará presente na reunião de fundação da UEC, onde Zita não irá, com muito pesar seu, como afirma no livro. Noutro passo das suas divagações totalmente incorrectas e falseadas afirma: «Em pouco tempo refizemos muito da UEC de Lisboa e ganhámos, entre outras, as Associações de Estudantes de Medicina, de Letras e de Direito». Zita nada tem a ver com a conquista dessas Associações que são prévias à sua chegada em Dezembro de 1972 à direcção clandestina da UEC de Lisboa. Eu próprio fui eleito presidente da Direcção da Associação de Estudantes de Medicina em 1971, bem antes da chegada da Zita. Será que não se lembra? Ou não resiste a distorcer a informação para valorizar o seu papel? É mais provável a segunda hipótese. Este é apenas um exemplo de muitos que se poderiam extrair por quem viveu esses momentos conturbados que antecedem o «25 de Abril».
O estilo mentiroso é tão descarado, no modo da fabulação, que se torna difícil a sua refutação analítica. Quase tudo é inventado, como quando conta um pretenso «ataque da UEC ao Técnico», em toda uma página (p. 245). O que aí se narra, como se pode apurar junto dos médicos Joaquim Judas (que, ao contrário do que escreve ZS neste relato, nunca na vida contactou ou foi ao Copcon!) e João Proença, foi tudo ao contrário. Numa reunião inter associações (RIA) que decorreu no IST alguns indivíduos de grupos pseudo radicais agrediram traiçoeiramente e brutalmente estudantes associativos vinculados à UEC, prática que já tinham exercitado antes do «25 de Abril» e de que eu próprio fui vítima em 1972. No dia seguinte, em resposta, muitos estudantes da UEC dirigiram-se ao IST para protestarem e fazerem uma demonstração de força, mas não houve qualquer confronto. ZS não tem peias em deturpar acontecimentos para denegrir a própria UEC que dirigiu, provavelmente com a finalidade de piscar o olho aos seus actuais amigos ex-maoistas, como Pacheco Pereira e Carlos Gaspar (este último, pasme-se, «encarregado da (sua) educação democrática», p. 397) os quais, como diz na entrevista da RTP, renunciam mais total e completamente à doença «comunista» infanto-juvenil do que os que foram do PCP.
Na vã tentativa de se elevar a si própria e rebaixar Álvaro Cunhal, que é perseguido em «Foi assim» por um ódio simétrico à admiração idolátrica que lhe havia votado, Zita Seabra tenta desvalorizar a obra, «O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista» (1970), considerando-a desactualizada, porque esgrimindo contra os esquerdistas de Paris, etc.. E diz: «A confusão ideológica que se gerou com esse livro foi tal que o Carlos Brito me pediu que fizesse um livrinho, um folheto, na mesma linha (…), mas colocando nele os grupos nacionais» (p. 165). Espantoso! Nem o livro está fora do país, porque, diga-se, esses grupos tinham sede em Paris e sucursal em Portugal, nem a preocupação de Álvaro Cunhal é uma pura descrição factual, mas a tipificação da ideologia e acção política, na sua diversidade, convergente unitariamente no ataque ao Partido. Nunca houve qualquer confusão ideológica resultante do livro, antes pelo contrário, foi extremamente útil no combate a esses grupos, cuja acção iria ser extremamente nefasta na Revolução de Abril. Um pequeno e significativo pormenor. ZS nunca escreveu nenhum folheto ou livrinho sobre o tema, mas isso não diz: serviu-se de um texto editado pela comissão técnica eleitoral do PCP em 1975, intitulado «O Maoismo em Portugal», que reeditou no jornal da UEC, em 1976, sem mencionar o autor, que é quem escreve estas linhas.

Deturpação da Revolução de Abril
e anti-socialismo militante

O anticomunismo cego de ZS leva-a a não ver que a sua postura não é historicamente muito diferente em vários aspectos da que fundamentou o fascismo português, tanto na versão salazarista como marcelista. Para o regime fascista, o «comunismo» era o «mal», para Zita, enquanto militante de causa anticomunista, outro tanto se pode dizer, por muito estranho que pareça. A luta anti-fascista, com os sacrifícios que comportou, incluindo a sua própria pessoa na primeira identidade, parece estranhamente absurda, quase anedótica, fruto da despersonalização (dupla identidade) da autora nos seus relatos. Não vemos em «Foi assim» nenhuma crítica severa ao fascismo e à crueldade dos seus esbirros, menos ainda à exploração das classes trabalhadoras e injustiças sociais do regime, baseado no poder de uma oligarquia capitalista e agrária, cujo poder foi restaurado em muitos aspectos na contra-revolução pós-Abril.
Zita Seabra, depois da mutação que, como se vê, não foi só epidérmica até já nem identifica o antigo regime como fascista. Diz, «o regime ditatorial» (p. 29), «uma ditadura completamente obsoleta para a Europa» (p.28), «o regime ditatorial português» (p. 336), e quando escreve «ditadura fascista», apaga a última palavra, com a explicação: «como se lhe chamava» (p. 34). Para os seus amigos de hoje é politicamente mais correcto agir com alguma brandura verbal em relação ao regime da velha senhora…
O discurso político de Zita Seabra pauta-se por um tom categórico proporcional à sua inconsistência lógica e ideológica. Quando analisa o período marcelista deturpa totalmente a táctica do PCP, adulterando por completo o que se disse: «Quando vim para Lisboa, achávamos que tínhamos alcançado o primeiro objectivo de todos, impedir que Marcelo Caetano fizesse uma transição pacífica do regime salazarista para uma progressiva abertura do regime à democracia.» A luta das forças democráticas e especialmente do PCP contra as ilusões da demagogia liberalizante marcelista é grosseiramente invertida. Não ter Marcelo levado por diante a sua pretensa liberalização foi culpa do PCP. Lê-se e não se acredita!
Quando está em preparação a Revolução de Abril, Zita ensaia pôr em dúvida o papel da direcção e do próprio PCP. Escreve isto, sem mais nem menos: «Com ou sem PCP a revolução ia fazer-se. E o certo é que nós, eu (no sector estudantil) e todo o restante aparelho clandestino que eu conhecia, nem por um segundo hesitámos e colocámo-nos de imediato ao lado dos oficiais (…)». Leia-se e releia-se: «eu e todo o restante aparelho…» A presunção megalómana fica a nu neste passo descuidado, que não deve ter sido convenientemente corrigido por Vasco Pulido Valente. A intenção óbvia é retirar o PCP do 25 de Abril; já agora, porque não, se tudo é permitido nesta prosa descabelada?
A malévola intriga «zitista» tem incidência especial no caso do Jornal República e da Rádio Renascença. Todos sabem que tais incidentes de carácter nitidamente provocatório, tal como o ataque à Embaixada de Espanha, foram obra dos grupos «esquerdistas», inimigos implacáveis do PCP, que consideravam reformista e revisionista. A Zita, amiga da onça, consegue descobrir na Renascença «um único militante do PCP», para ajudar à sua missa negra ( p. 288).
Zita Seabra tenta desfigurar a ética comunista, treslendo a brochura «A superioridade moral dos comunistas» (A. Cunhal), numa óptica de maquiavelismo primário. A moral comunista seria a imoralidade baseada no princípio de «usar todos os meios para atingir os seus fins» (p. 76). Em nenhuma parte do texto se diz tal coisa, nem é princípio do marxismo-leninismo. A partir daí, vai justificar todas as suas interpretações absurdas e caluniosas, como, por exemplo o seguinte: «Logo a partir do 1.º de Maio de 1974 o PCP empenhou-se diariamente a anunciar conspirações, golpes iminentes, contra-golpes reaccionários, de civis e militares, grandes perigos para o regime democrático». Para esta senhora, a revolução de 25 de Abril teria sido uma primavera marcelista se a esquerda e especialmente o PCP não atrapalhassem o trânsito. Tudo o resto foram «inventonas». A spinolada não existiu, o «28 de Setembro» não passou de uma data festiva, o «11 de Março» foi um festival aéreo, etc., etc.. A autora, faz aqui o contrário do habitual, em vez de confabular pela positiva, a mitomania compulsiva, procede por efabulação negativa: o que aconteceu não foi… Na mesma série, se inclui a insídia de sugerir que o Partido não pretendia eleições democráticas, quando esse é uma dos seus pontos programáticos essenciais da revolução democrática e nacional, objectivo da longa luta pela liberdade e por um regime democrático, em que ninguém, nem nenhum partido pode dar lições ao PCP. Milhares de comunistas perderam a liberdade para lutar pela Liberdade.
Depois disto tudo passa a fazer a propaganda do «comunismo» por exagero e excesso, retórica utilizada para assustar os meninos e as meninas. A nacionalização da Banca e dos Seguros, medidas anticapitalistas tomadas após o 11 de Março, cuja iniciativa resulta do processo revolucionário e da movimentação das massas trabalhadoras, merece uma descrição irónica para agradar à sua actual plateia: «A economia entrou em nacionalizações sucessivas (…) e os capitalistas ou fugiram ou foram presos pelo Copcon, acusados de conspiração. Se não tinham conspirado, paciência, tivessem-no feito». (p. 261)
Outra falsa teoria de ZS sobre a linha do Partido resulta de imaginar que o Programa da Revolução Democrática e Nacional, original concepção do Partido para o derrube do fascismo, seria uma cópia das obras de Lenine sobre a Revolução Russa, nas suas duas etapas. Tal resulta da sua incipiente consciência política teórica no passado, aliada à intencionalidade perversa da postura actual. É a própria ZS que diz após transcrever os oito pontos da revolução democrática e nacional: «todos nós sabíamos de cor esta enunciação». Mas para saber, não basta decorar… O adversário também pode saber de cor a linguagem marxista, mas não alcança o marxismo. No caso de Zita, o mais provável é ter ficado só com a cábula na cabeça.
No prefácio à obra «O caminho para o derrubamento do fascismo – IV Congresso do Partido Comunista Português» (Edições Avante, 1997), eis como Álvaro Cunhal define as características identificadoras dos partidos comunistas e do movimento comunista em geral: «Uma, a completa independência dos interesses, da política, da ideologia, das pressões, ameaças e medidas repressivas das força do capital. Outra, a par da luta com objectivos imediatos, a luta pela transformação revolucionária da sociedade, pelo socialismo e o comunismo». (p. 48)
Sem perceber nada disto, convertida à classe burguesa de origem, resta-lhe a magia verbal para apoucar o PC: «é um partido de pequenas causas», diz na RTP 1. As pequenas causas da luta pela justiça social, da luta das classes trabalhadoras pelos seus direitos, da luta por uma sociedade sem exploração do homem pelo homem, uma sociedade de igualdade e liberdade.
A questão da derrota do sistema socialista na Europa de Leste e na Rússia parece ter sido a espoleta que levou Zita a virar o bico ao martelo. Compreende-se que uma transformação histórica de tal dimensão tenha abalado a consciência política de muitos. Mas é muito estranho que quem achava ter sido o PCP um sucedâneo da URSS, como exprime Zita no seu «Foi assim», fique perturbado pelo facto do Partido continuar a sua existência e luta, sem esse apoio internacional. Zita Seabra poderia ser, porventura, um bom exemplar da nomenklatura, na sua expressão mais negativa, daqueles elementos de uma casta burocrática de alguns partidos comunistas acomodados no poder, desligados do povo e habituados a soluções administrativas. Na sequência da perestroika, alguns converteram-se directamente ao capitalismo e serviram-se de posições para refazer uma classe exploradora e capitalista.
Convém lembrar que o programa inaugural da perestroika era mais socialismo e democracia. Temos de admitir que essa possibilidade histórica existia, embora não se tenha concretizado. Esse programa foi desvirtuado, gerando-se uma dinâmica de restauração selvagem do capitalismo e de nacionalismos reaccionários. Na maioria dos países, passados mais de 15 anos, o nível de vida do povo ainda não recuperou o do sistema anterior.
A pessoa de convicções não muda de cor devido a uma derrota. A teoria do materialismo dialéctico e histórico pode fundamentar modelos e soluções práticas diferentes das que se concretizaram na Europa no século XX. Reduzir a Teoria ao simplismo de Zita e consortes quando dizem que «a ideia do comunismo está errada, não apenas a sua prática», é apenas a expressão de uma opinião e uma profissão de fé. O mesmo se poderá dizer do capitalismo, cujo livro negro não tem mercado livre como as ideias de Zita Seabra. Ideias que são estranhamente cruéis e ferozmente antidemocráticas, como quando marca simbolicamente a derrota do socialismo na URSS na seguinte declaração, dirigida vingativamente a Álvaro Cunhal: «… foi derrotado…, no dia em que o Parlamento Russo foi cercado e bombardeado» (p. 401).
Houve quem quisesse decretar o fim da história, após a desintegração da URSS. Esfumaram-se rapidamente as ilusões das promessas do sistema capitalista desenvolvido. O imperialismo à solta, sem contraponto, soltou as garras e multiplicaram-se guerras e morticínios. O capitalismo prossegue a sua ofensiva contra o trabalho e os trabalhadores, intensificando à escala mundial a exploração. A desigualdade social aumenta nos países capitalistas desenvolvidos, as assimetrias da globalização são brutais e sem remédio. É assim.
Mas a luta continua, pelo aprofundamento da democracia, e por uma sociedade socialista aberta ao futuro, ao serviço do Homem.
José Manuel Jara
Médico psiquiatra
Artigo publicado no Avante nº1756, de 26.07.2007

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