sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Conhecer e defender Lisboa

Um prédio arrogante e mal colocado

Cinco razões para não aceitar a construção de um prédio de rendimento com dezenas de andares, entre o miradouro de Santa Catarina e a margem do rio Tejo, em Lisboa
A primeira, uma questão de obscenidade. O arquitecto francês Emile Ailland. D.P.L.G., que teve notoriedade em meados do século passado, por obras, ditos e maneira de ser, quando cresciam torres por todos os arredores de Paris, costumava dizer que o que o chocava era o facto daquele tipo de edifício colocar o obsceno do quotidiano perante todos e acrescentava, colorindo o pensamento: "toda a gente pode dizer, lá vai o Dupont à casa de banho ou o casal Dupond está zangado porque ele está sozinho na sala e ela tem a luz acesa no quarto…". Milhares de janelas indiscretas.
Se o prédio de rendimento que querem construir entre o miradouro de Santa Catarina e a margem do rio Tejo, em Lisboa, vier a concretizar-se (longe vá o agouro!) quem do jardim onde está a estátua do furibundo Adamastor tentar ver 180º de paisagem terá diante de si à altura dos seus olhos, empilhados por andares, dezenas de quotidianos que, mesmo que sejam charmosos, porque aquilo é para gente fina, não deixam de ser obscenos (no verdadeiro sentido da palavra, o que está fora de cena e não é para ser visto).
Verdade seja dita que não haverá roupa estendida às janelas que isso é hábito de gente pobre que nunca lá poria os pés.
A segunda, uma questão de verdade. Nada é mais enganador e distante da realidade que uma atraente maqueta, duzentas ou quinhentas vezes mais pequena que a realidade ("small is beautifull"), os pormenores desaparecem, as superfícies são todas lisas e brilhantes, um único material constrói tudo, não há manchas nem improvisos. Um prédio, e sobretudo um prédio destinado a habitação ou escritórios, é atingido sempre por um envelhecimento precoce e acelerado resultante da heterogeneidade dos materiais empregues e do próprio uso. Cada um manda em sua casa ou no seu local de trabalho e a sua vontade transparece para a rua que é de todos.
Em Lisboa, no Saldanha, que é praça concorrida, num edifício recente e badalado, a fachada mostra, sem rebuço, as entranhas de escritórios desarrumados, cada qual iluminado e mobilado à sua maneira. É desgostante. Coisa semelhante ocorre em algumas das grandes janelas do rés-do-chão da Casa da Música, no Porto.
E num prédio de habitação se houver varandas, as que já estão envidraçadas e as que virão a ser envidraçadas, mais as plantas, o mobiliário, os toldos e as cortinas, cada qual ao seu jeito, transformam frequentemente todo o edifício num bairro de lata, ao alto. Com o beneplácito da Câmara.
O prédio de rendimento que pretendem construir, entre um miradouro e a margem do rio substituirá o "ver navios no Alto de Santa Catarina" que representa a nostalgia dos que quereriam partir, por uma vista, em primeiro plano, sobre um subúrbio de luxo, na vertical, mesmo que hábil publicidade o afirme "signé" e faça crer o contrário.
Um edifício a ser singular e marcante, como se pretende que este seja, deverá garantir qualidade no funcionamento e na resistência ao tempo e não ser impositivo no seu novo-riquismo, mesmo que seja "high-teck" e brilhante.
O monumento ao Infante D. Henrique e aos descobridores que vem da Exposição do Mundo Português compete em volume e altura com a Torre de Belém, mas é um monumento durável e respeita-a; a Torre de Controle do Porto de Lisboa confronta-se pelo desenho, a cor e os equipamentos mas é um equipamento cuja necessidade não se põe em dúvida; o Centro Cultural de Belém mimetiza-se nos materiais e na cor com os Jerónimos, mas afirma contemporaneidade no desenho e complementa-os.
Nenhum é um prédio de rendimento, arrogante e mal colocado. Nenhum é um "edifício Coutinho".
A terceira, uma questão de moral. Os proxenetas do urbanismo tomam por conta o corpo da nossa cidade. Compram-no, vendem-no, maltratam-no e ganham dinheiro com ele. Por vezes, mandam vir do estrangeiro grandes costureiros da arquitectura que o ataviam e o fazem vender mais caro. Escolhem para se exibir as melhores esquinas da cidade, as mais espectaculares vistas e, se for preciso, desrespeitam planos e calam condicionantes perante o deslumbre que o vedetismo exerce sobre os indígenas. Os promotores lucram e os políticos ganham votos.
E com isso antecedem-se aos que à sua volta também quereriam torres nos seus terrenos e se todos tivessem torres nos seus terrenos a cidade incharia como a rã da fábula e estouraria. Já faltou mais.
Uma advertência: a palavra proxeneta segundo o Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado vem do grego e significa "o que intervém num negócio", ganhou na língua portuguesa um significado mais específico que aqui não se descarta.
A quarta, uma questão de cultura. As cidades são uma invenção do Homem e floresceram no Mediterrâneo. Os portugueses foram os primeiros a levar a invenção para o hemisfério sul. Foram hábeis em fazer e fazer viver as cidades: perceberam os sítios, entenderam os costumes e construíram em concordância.
Basta olhar para Lisboa: edifícios baixos ligados ao rio e à faina, baixos mesmo quando albergam o poder no Terreiro do Paço, volumes desmultiplicados a atapetar as colinas, os cumes marcados por construções singulares a desenharem delicados perfis. Até o Centro Cultural de Belém, moderno, por ser ribeirinho é baixo e discreto, até as Amoreiras, post-modernas, se assumem em coerência com o cimo que ocupam, pena é que por tantas torres terem sido construídas à sua volta elas tenham perdido o seu faustoso protagonismo.
Esta característica de Lisboa e a claridade que aporta à cidade e as vistas que consente da cidade para o rio e do rio para a cidade é sentida por todos, desenvolve sentimentos de posse e é, portanto, patrimonial.
A quinta, uma questão de história recente. Os movimentos da população dinamizados para conservar e desenvolver esse sentimento evidenciaram-se em meados dos anos 80 com episódios das então chamadas Torres do Tejo que iam amesquinhar os Jerónimos e foram banidas, mas recentemente as três torres de Alcântara foram escorraçadas pela população, assim como na margem Sul a Manhatan de Cacilhas se tranquilizou e o elevador de S. Jorge contrário a estes princípios foi, com humildade democrática, retirado.
Que razões haverá, pois, para que tudo isto seja contrariado e se venha a construir um prédio de rendimento, com dezenas de andares entre o miradouro de Santa Catarina e o aterro da Boa Vista, na margem do rio Tejo, em Lisboa?
"… money, money… money!"

Jornal da Voz do Operário
Escrito por Francisco da Silva Dias
Sexta, 21 Setembro 2007

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