quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A sociedade da desinformação

Uma pergunta que os meus leitores fazem muitas vezes é porque os media ditos "de referência" estão a fazer um trabalho tão mau quanto ao relacionamento entre a emergência energética global e as perturbações nas finanças globais. Mantenho a minha "alergia" a teorias da conspiração. Não existem quadrilhas de figurões da Wall Street conluiadas com tipos de fato cinzento da CIA para intimidar editores com instrumentos de tortura. A cultura americana já se tornou auto-desinformativa.

Como disse muito bem o meu amigo Peter Golden (blog Boardside ): "Quando as pessoas mentem, elas sabem que estão a fazer algo errado. Mas quando elas apenas fantasiam, não funciona a consciência do certo ou do errado. Parece moralmente certo viver num mundo de fantasia – e isto é muito mais pernicioso para o discurso público do que a mentira".

Meus amigos, que em grande parte são ex-hippies, yuppies progressistas, durante seis anos ativeram-se a preces para exorcizar o mau espírito de George W. Bush, mas deixaram de reconhecer um fracasso de liderança mais abrangente em todos os sectores da vida americana e especialmente naqueles onde actua um bocado de ex-hippies-agora-yuppies. A nossa liderança política pode ser deplorável, mas também a nossa liderança nos negócios, na educação, nas artes e especialmente nos media.

A demonstração disto é The New York Times. Nas suas reportagens acerca da situação petrolífera mundial eles engoliram totalmente e acriticamente as notas de relações públicas de Daniel Yergin, do Cambridge Energy Research Group (CERA), um estabelecimento de RP ao serviço da indústria petrolífera. A preguiça [na investigação jornalística] não chega para explicar isto. É má liderança editorial. É um fracasso na formulação das perguntas importantes.

Na sexta-feira os mercados futuros de petróleo fecharam a um dólar de distância de todos os récords de preços elevados (no mesmo dia em que o Índice Industrial Dow Jones caiu 250 pontos). Contudo, a principal manchete de hoje (segunda-feira) na Secção de Negócios do NY Times é "Disney testa a natureza dos brinquedos à procura de tinta com chumbo". Bem, espero que consigamos corrigir isto de modo a que a civilização possa continuar com uma oferta completa de bonecos da Disney debaixo das árvores de Natal – e esqueça por um momento se a Avó será capaz de conduzir até o WalMart em Dezembro, ou se o WalMart será capaz de manter cheios os reservatórios de diesel dos seus camiões, ou se tanto a Avó como o administrador assistente do seu WalMart local estão com atrasos de três meses nos pagamentos das suas hipotecas reajustadas, e já atingiram os limites máximos dos seus cartões de crédito...

Para mim, parece haver uma óbvia correlação entre os fracassos actuais dos mercados financeiros – em particular o sector do crédito – e o fracasso brutal de liderança em toda a administração da vida americana. No final das contas, o crédito depende da legitimidade, e o mesmo se passa com a autoridade. Eles estão ligados em conjunto. Durante anos, ambos estiveram imersos na fantasia ao invés da realidade.

De outra forma, como pode alguém justificar o espantoso desaparecimento dos padrões no empréstimo entre seres humanos, sob o comando de instituições bancárias? Todos os executivos bancários não acordaram uma certa manhã com uma falta de 60 pontos nos seus QI. E nem tão pouco se pode dizer que todos eles acordaram uma manhã com as más intenções de trabalharem com perversidade. Eles simplesmente foram subsumidos numa fantasia: de que não havia diferença material entre tomadores de empréstimos com capacidade comprovada de os reembolsarem e tomadores sem qualquer possibilidade de crédito. E livraram-se dos problemas que se poderiam ter seguido através da liquidação por grosso de pacotes de bons e maus empréstimos a compradores aquiescentes (outros executivos bancários) mais abaixo da linha, os quais por sua vez venderam certificados que representavam estes pacotes a executivos em grupos de pensão e mercados de dinheiro. Isto tornou-se normal. Isto foi justificado em toda a extensão da liderança americana pelo Explicador-Chefe quando disse que era uma coisa boa que tantos americanos quanto possível possuíssem a sua própria casa.

Será que os media americanos deram conta desta cadeia de perigosas fantasias? De modo algum. Ficaram simplesmente hipnotizados pela admirável e sobrenatural ascensão dos preços nominais das casas, e com o fantástico fluxo de cheques de pagamentos vindos dos escritórios dos construtores de casas, assim como com os fabulosos refinanciamentos que enviavam torrentes de rendimento para as lojas de móveis em saldo, com o catálogo da Williams Sonoma [1] e com os salões de cirurgia plástica.

PICO PETROLÍFERO

Tudo isto verifica-se contra o pano de fundo do que tem sido chamado Pico Petrolífero (Peak Oil), o ponto de viragem na produção global de petróleo e, na verdade, o mais alto ponto de todos os tempos no consumo mundial do óleo, o qual agora pode ser datado com precisão (por meio do espelho retrovisor) como tendo atingido o topo absoluto em Julho de 2006 – o momento exacto, por acaso, em que um gigantesco alfinete perfurou as moléculas externas da telenovela que mantinha a bolha imobiliária.

A produção de petróleo (todos os líquidos, incluindo subprodutos do gás natural, areias betuminosas e tudo o mais) agora está mais baixa em mais de um milhão de barris por dia. Até aqui experimentámos isto apenas através dos abalos crescentes nos preços futuros do petróleo. Ao longo deste breve período de tempo, desde o pico absoluto, as perdas de oferta têm sido remetidas para as sociedades mais pobres do mundo, as quais simplesmente retiram-se da competição por abastecimentos de petróleo.

O que os media "de referência" omitem neste momento é a perspectiva de uma pioria realmente rápida do problema quando as exportações dos países grandes produtores de petróleo caírem a uma taxa mais aguda do que a do declínio da sua produção. Esta ideia foi articulada pelo geólogo de Dallas Jeffrey Brown, em The Oil Drum.com (para uma discussão quanto a isto ir ao blog Energy Intelligence , de Jeff Vail).

Os media "de referência" também fracassam em estabelecer a conexão entre a suprema mercadorias que permite às economias industriais do mundo operarem e a credibilidade de um sector financeiro cuja missão principal é financiar a operação de economias industriais. Na ausência de qualquer perspectiva de crescimento real na economia industrial da América, o sector financeiro inventou um sistema no qual podíamos investir na fabricação de instrumentos de investimento ao invés de investir na actividade produtiva propriamente dita. E assim toda a perícia e todo o tempo daqueles que trabalham no sector financeiro voltou-se para a produção de veículos de dívida comerciáveis baseados em fórmulas abstrusas que quase ninguém podia entender (especialmente aqueles que os compravam e os vendiam).

Toda esta perigosa fantasia ganhou legitimidade porque durante algum tempo parecia compensar. Cidadãos comuns podiam adquirir casas muito maiores e mais bem equipadas do que os seus rendimentos justificavam. E os banqueiros e emitentes das hipotecas obtinham comissões colossais com esta actuação. E os banqueiros em posições mais elevadas na cadeia obtinham bónus nunca vistos com a alavancagem da dívida titularizada de tudo aquilo, e os políticos regozijavam-se ao calor de uma aparente hiper-prosperidade, e o professor Bob Bruegmann, da Universidade de Illinois, declarava que a dispersão suburbana é uma coisa boa, e mesmo The New York Times, se bem que desconcertado quanto a eficácia da recolha de notícias contra a Internet, era capaz de rapar de publicidade suficiente para construir uma desnecessária nova sede em Manhattan, um arranha-céu.

Agora o sonho acabou. O azar moral com base na realidade está a retornar (literalmente) como uma vingança. O certo e o errado estão em vias de importar outra vez e um bocado de pessoas que puseram estas coisas de lado por algum tempo irão sofrer.
10/Setembro/2007
[1] Estabelecimento que vende artigos de cozinha.

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