sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Trabalhadores da Pereira da Costa em vigília há um ano


Resistir compensa

A razão e as decisões dos tribunais estão do seu lado, mas a Polícia só recorreu à força para fazer valer as razões do patrão. Perante a indiferença dos poderes, poderiam concluir que o crime compensa. Mas, ao fim de um ano de dura luta, os trabalhadores da Pereira da Costa mantêm-se unidos e apontam os resultados deste combate, firmes para o prosseguir. Em vez de serem despedidos sem indemnizações e com uma brutal carga de humilhação patronal, abandonando a construtora à especulação imobiliária, os operários preservaram a dignidade, conseguiram defender o principal património da empresa e esperam um acordo para o pagamento dos créditos. Já o Estado, grande credor neste caso, prima pela desresponsabilização, chame-se ela burocracia, inércia ou opção política.

Contado a partir de 1 de Setembro, quando os trabalhadores despedidos ilegalmente começaram a cumprir o horário de trabalho junto aos portões da sede e estaleiro principal da Pereira da Costa, ou a partir de 1 de Outubro, quando a vigília passou a ser permanente, é assinalado com confiança e determinação este ano de luta de uma centena de operários, apoiados pelo Sindicato da Construção do Sul e, em geral, pelas estruturas da CGTP-IN no distrito, com a solidariedade do PCP.
Os toldos, montados há um ano para abrigar os trabalhadores em vigília, são hoje uma «barraquinha», que apoia a permanência diária de vinte a trinta homens. Em dias de plenário ou quando necessário, o número chega a triplicar, asseguram João Serpa e Manuel Afonso. À nossa reportagem, estes dirigentes do Sindicato da Construção do Sul - a estrutura da CGTP-IN com mais forte presença na empresa - salientam que a luta envolve já todos os trabalhadores da Pereira da Costa: os que foram despedidos ilegalmente, em Setembro de 2006, e que a administração recusa reintegrar; os que, em Janeiro passado, suspenderam os contratos, por terem salários em atraso; e os que ainda estão a laborar, em condições muito precárias e que cujos vencimentos são pagos com grande atraso há vários meses (e a quem a empresa não passa recibos de remuneração, além de não entregar os descontos à Segurança Social).
Ultrapassados já todos os prazos, era esperada ontem uma decisão do IAPMEI sobre o procedimento extrajudicial de conciliação, requerido pela empresa. Para o sindicato e os trabalhadores, o ideal seria que a administração aceitasse a proposta que apresentaram.
Mas, até ao final da semana passada, não havia notícia de qualquer resposta da empresa. O presidente do conselho de administração, Luís Moreira, não é visto no estaleiro da Venda Nova há mais de seis meses, desde a carga policial contra os trabalhadores. Quem por ali se mantém - mesmo que diga que está ausente no estrangeiro, como sucedeu há poucas semanas, conseguindo assim mais alguns dias de extensão de prazos no IAPMEI - é Nuno Magalhães, administrador e genro do patrão.
Independentemente do que ontem tenha sucedido, quanto ao procedimento extrajudicial de conciliação, está marcado para 6 de Novembro, no Tribunal do Comércio de Lisboa, o início do julgamento da insolvência da Pereira da Costa Construções, requerida pelos trabalhadores.
Ainda este mês, deverão concluir-se as diligências para que os trabalhadores possam receber da Segurança Social o Fundo de Garantia Salarial.
No dia 3 de Outubro, poderá ser resolvido outro importante problema. A comissão de credores e o liquidatário judicial da MB Pereira da Costa não conseguiram comunicar com os administradores da Pereira da Costa Construções e requereram, em Janeiro, que o Tribunal do Comércio de Lisboa, onde corre a falência, notificasse os administradores e o presidente da administração, para comparecerem perante a juíza e definirem uma data para realizar a escritura do imóvel. A escritura, de acordo com os compromissos assumidos pela Pereira da Costa Construções, deveria ter sido realizada em Novembro de 2005 (90 dias depois de assinado o contrato-promessa de compra e venda), mas tem sido impossibilitada por «sucessivas fugas» da administração, acusam os representantes dos trabalhadores.
O comportamento de Luís Moreira neste caso terá causado algum embaraço no Sport Lisboa e Benfica - isso ficou evidente nos contactos com os responsáveis sindicais e no facto de a Pereira da Costa ter deixado recentemente de aparecer como patrocinadora da equipa de futsal. Mas o patrão continua a figurar como director-geral do clube para esta modalidade.
Da parte das instituições e órgãos de soberania, a quem trabalhadores e sindicato foram insistentemente dando notícias dos desmandos patronais e da luta desigual na Pereira da Costa, não foi notado qualquer embaraço com o facto de, além de duas centenas de postos de trabalho, estarem em jogo verbas elevadas devidas ao erário público (Fisco e Segurança Social). «Faltou uma atitude política», sintetizou João Serpa, depois de evocar as respostas vagas ou o simples silêncio, por parte dos gabinetes do primeiro-ministro e de ministros, ou a «falta de agenda» do Presidente da República.
Mesmo o presidente da Câmara da Amadora, que esteve uma vez no estaleiro, em Fevereiro, e prometeu ir levar o caso ao Governo do seu partido, «podia fazer muito mais, mas não fez». Neste caso, a preocupação agrava-se, porque estão também a ficar descredibilizadas as afirmações do autarca, quanto a impedir alterações do Plano Director Municipal que possam ir ao encontro de quem tem interesse nos terrenos da Pereira da Costa para negócios imobiliários, em vez da actividade industrial.
No balanço deste ano de combate, pelo emprego, pela justa remuneração do trabalho, pelo cumprimento da lei e dos direitos dos trabalhadores, João Serpa e Manuel Afonso respondem, sem hesitar, que «o ânimo mantém-se», para «continuar a lutar contra estes tipos, que parece que não vivem num estado de Direito».

Dias decisivos

Nas páginas do Avante!, a luta dos trabalhadores da Pereira da Costa, como outras semelhantes, tem estado presente de forma quase constante. Ao assinalarmos um ano de permanência dos operários junto aos portões da empresa, evocamos aqui alguns dos momentos mais importantes desta história, a partir das notícias que fomos dando no jornal.


2003

Ao longo do ano, apesar de ter uma confortável carteira de encomendas, a MB Pereira da Costa acumula dívidas e atrasa o pagamento de salários. Por duas vezes, em Novembro e em Dezembro, os trabalhadores impedem a penhora das máquinas, ordenada pelo tribunal, e evitam o encerramento da empresa, resistindo à polícia de choque. As penhoras acabam por ser suspensas e é nomeada uma administração judicial.


2004

Impedida de participar em concursos públicos, a MB Pereira da Costa consegue manter o pagamento de salários. O Estado, credor maioritário, recusa abdicar de parte dos créditos, condição que os trabalhadores defendem (inclusive, em concentrações no Terreiro do Paço e em São Bento) para a viabilização da empresa e para evitar os prejuízos maiores que o erário público teria com a liquidação da construtora.
A 30 de Novembro é decreta
da a falência. Os trabalhadores decidem manter a laboração, até à realização do leilão, e continuam a insistir com o Estado para que apoie a viabilização.


2005

19 de Maio
Até para cobrança de avultadas dívidas à empresa foi necessário recorrer à luta, como viria a suceder a 19 de Maio, com uma concentração frente à Câmara Municipal de Lisboa, para reclamar (e conseguir) o pagamento de uma dívida de mais de cem mil euros, verba suficiente para pagar os salários de Abril.

26 de Julho
No leilão que culmina o processo de falência da MB Pereira da Costa, o Estado aceita reduzir os seus créditos. O património, o pessoal e a carteira de encomendas são adquiridas pela Pereira da Costa Construções, de Luís Moreira, que se afirma determinado a desenvolver a actividade produtiva.



2006


9 de Maio
É despedido um delegado sindical, apelando a Comissão Concelhia da Amadora do PCP a que os trabalhadores respondam com firmeza. Em comunicado, os comunistas criticam severamente a actuação da nova administração, que «não tem ainda assinada a escritura da empresa; não tem ainda todos os alvarás necessários; não paga atempadamente os salários; não desenvolve a capacidade produtiva da empresa; não tem matéria-prima no estaleiro; vende materiais da empresa; e, mais grave, levanta processos disciplinares a vários trabalhadores».

14 de Julho
É constituída uma «empresa na hora», denominada Preidacosta Construções, com sede social na Rua das Fontainhas, 49, Venda Nova, Amadora (a morada da Pereira da Costa) e cujos sócios são um filho e um sobrinho de Luís Moreira.
Actualmente, no Tribunal Cível da Amadora, corre termos uma acção, movida pelos trabalhadores, impugnando a passagem de 20 viaturas da Pereira da Costa para a Preidacosta.

30 de Agosto
A cerca de 90 trabalhadores, a Pereira da Costa Construções comunica a intenção de despedimento, na base de processos disciplinares. O Sindicato da Construção do Sul, logo após o fim-de-semana, emite um comunicado em que considera tratar-se de uma situação de despedimento colectivo encapotado, depois de os trabalhadores terem rejeitado propostas da administração para rescisão dos contratos «por mútuo acordo».
As notas de culpa, de que os trabalhadores foram dando conhecimento ao sindicato ainda durante os primeiros dias de Setembro, tinham 35 quesitos iguais para todos os funcionários.

1 de Setembro
Os trabalhadores despedidos ilegalmente são impedidos de entrar nas instalações. Apoiados pelo Sindicato da Construção do Sul, pelo Sindicado das Indústrias Eléctricas do Sul e Ilhas e outras estruturas da CGTP-IN, decidem permanecer junto aos portões da sede da empresa, cumprindo o horário de trabalho e manifestando o seu protesto, com faixas e bandeiras.

15 de Setembro
A administração chama a Polícia, face ao protesto dos trabalhadores, concentrados junto aos portões da empresa. Em plenário, no dia 19, estes decidem manter o protesto junto ao estaleiro-sede. A partir de Outubro, a vigília passa a ser permanente, assumida como forma de defender o património da Pereira da Costa, garantia do pagamento aos trabalhadores e demais credores.

12 de Outubro
De manhã, antes de se integrarem no «protesto geral» da CGTP-IN, os trabalhadores da Pereira da Costa concentraram-se junto ao Ministério do Trabalho, exigindo uma intervenção pronta do ministro para repor a legalidade na empresa.

16 de Outubro
Os trabalhadores despedidos são convocados para, em dias diferentes, irem à empresa receber os seus direitos e as declarações para o fundo de desemprego. É-lhes exigido que assinem uma «declaração de quitação», em que reconheceriam as acusações constantes das notas de culpa, aceitariam desistir de recorrer aos tribunais, dariam como liquidados todos os créditos e ficariam obrigados a pagar uma indemnização, se não cumprissem a «quitação». Não assinaram e a empresa não pagou.

8 de Novembro
Um grupo de mais de uma dúzia de elementos de uma força privada de segurança, às ordens da administração, tenta retirar do estaleiro dois camiões carregados de cobre. Apesar de se apresentarem armados, a tentativa foi gorada pela resistência dos trabalhadores e pela presença da PSP, chamada por estes.

23 de Novembro
Os trabalhadores em vigília conseguem impedir uma tentativa de roubo de documentos e material informático. Luís Moreira apresentou-se com um grupo de homens estranhos à empresa e quase uma dezena de viaturas. Depois de ameaçarem os trabalhadores, a PSP foi chamada e deu razão aos operários. Mais tarde, estes ainda frustraram a retirada de pastas e computadores, que estavam escondidos num dos carros.
Na madrugada seguinte, os mesmos seguranças tentaram forçar a entrada, mas voltaram a ser travados pelos trabalhadores e pela Polícia.
Como a administração da Pereira da Costa se ausentara da empresa e já tinha apresentado, há uma semana, um processo de insolvência, era aguardada a nomeação de um gestor judicial.

29 de Novembro
A responsável pelo caso da Pereira da Costa na Inspecção do Trabalho de Lisboa (onde as participações eram já mais de duas dezenas) desloca-se finalmente à sede da empresa, onde reúne com o presidente do conselho de administração, que estava à sua espera. Mas não quis falar com os trabalhadores nem identificar os que comparecem todos os dias e estão impedidos de picar o ponto.

30 de Novembro
Trabalhadores deslocam-se até junto do apartamento, nas Laranjeiras, Lisboa, para onde a administração transferiu os escritórios da Pereira da Costa, depois de Luís Moreira e demais administradores terem abandonado as instalações na Venda Nova.
A vigília dos trabalhadores voltou a impedir a retirada de bens.

11 de Dezembro
Os trabalhadores opõem-se e impedem a administração de retirar viaturas da empresa. Saíram igualmente frustradas as tentativas de divisão dos funcionários, com Luís Moreira a querer colocar na luta dos despedidos as culpas pelos problemas da empresa.

14 de Dezembro
Um grupo de trabalhadores vai à Inspecção do Trabalho, exigir uma intervenção eficaz para que sejam cumpridas pela administração as decisões judiciais de reintegração dos despedidos e para que sejam pagos os salários em atraso, que já ascendem a quatro meses.

29 de Dezembro
Jerónimo de Sousa volta a visitar os trabalhadores, no seu local de vigília, expressando-lhes a solidariedade do PCP e incentivando-os a prosseguirem a luta.



2007

10 de Janeiro
A luta alarga-se a mais cerca de 50 trabalhadores, que estavam a trabalhar mas não receberam os seus salários. Ao abrigo da lei, suspendem os contratos e juntam-se aos camaradas em vigília.

12 de Janeiro
A administração da Pereira da Costa Construções retira o processo de insolvência que tinha apresentado e que poderia pôr em causa a aquisição da falida MB Pereira da Costa.

1 de Fevereiro
A entrada no sexto mês de luta (e quinto de vigília permanente) é assinalada com um almoço de solidariedade, oferecido pelo Sindicato da Cerâmica e que contou com a participação de Manuel Carvalho da Silva e outros dirigentes da CGTP-IN.

22 de Fevereiro
É recebida na Assembleia da República a resposta do ministro das Finanças ao requerimento apresentado pelo PCP a 8 de Novembro, sobre a aquisição da MB Pereira da Costa pela Pereira da Costa Construções. Diz o Governo que «já foi efectuado o contrato promessa de compra e venda do estabelecimento, faltando realizar a escritura do imóvel». O prazo para a escritura estava esgotado desde Novembro de 2005.

2 de Março
Realiza-se, de manhã, junto à residência oficial do primeiro-ministro, uma concentração de trabalhadores, exigindo que o Governo intervenha para pôr cobro às ilegalidades e garantir os direitos e interesses dos trabalhadores e do Estado. De tarde, os trabalhadores participam na acção nacional de protesto convergente da CGTP-IN.

13 de Março
Para dar cumprimento a uma providência cautelar, interposta pela administração, contestada pelos trabalhadores e a que dias antes o tribunal decidira dar razão, Luís Moreira comparece nas instalações da empresa, acompanhado de uma oficial de Justiça. Uma força policial é mobilizada para acompanhar as diligências de «restituição de posse» que, afinal, se destinaram a possibilitar a retirada de bens da empresa. A justa indignação dos trabalhadores foi reprimida, um dirigente sindical foi detido por algumas horas, um repórter do Avante! foi também agredido por agentes à paisana.

14 de Março
O Tribunal de Trabalho de Lisboa decide penhorar a facturação e bens móveis da Pereira da Costa Construções, como garantia dos créditos dos trabalhadores.

10 de Abril
O Sindicato da Construção do Sul revela que foi aceite pelo tribunal a contestação dos trabalhadores à providência cautelar de «restituição de posse», accionada pela administração e que esteve na origem da carga policial de 13 de Março.
Os trabalhadores desencadeiam, no Tribunal do Comércio de Lisboa, um processo de insolvência da Pereira da Costa Construções.

30 de Abril
Chega ao fim o prazo inicial determinado pelo IAPMEI para que se concretize o procedimento extrajudicial de conciliação, proposto pela administração, em resposta à insolvência requerida pelos trabalhadores.

20 de Junho
O Sindicato da Construção do Sul emite parecer negativo, relativamente ao plano de viabilização apresentado pela administração no IAPMEI, apontando graves inconsistências nas contas de 2006, nas previsões até 2010 e na fundamentação da proposta para pagamento das dívidas, bem como nas garantias indicadas por Luís Moreira.

31 de Agosto
O sindicato entrega no IAPMEI a relação nominal dos trabalhadores despedidos em Setembro de 2006 e dos que, no início de 2007, resolveram o contrato de trabalho ao abrigo da legislação sobre salários em atraso. Esta responsabilidade cabia à empresa, que declarou ao IAPMEI não ter condições para a elaborar, pelo que o Instituto a solicitou ao sindicato. O valor em débito atinge, no total, quase dois milhões de euros (1.944.812,12 euros) e os trabalhadores aceitam a proposta da empresa de pagamento imediato de apenas 50 por cento, mas exigem garantias bancárias para o resto da dívida e o seu pagamento em doze prestações mensais, cujo valor não deverá ser menor que a remuneração-base de cada trabalhador.

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    Conhecer e defender Lisboa

    Um prédio arrogante e mal colocado

    Cinco razões para não aceitar a construção de um prédio de rendimento com dezenas de andares, entre o miradouro de Santa Catarina e a margem do rio Tejo, em Lisboa
    A primeira, uma questão de obscenidade. O arquitecto francês Emile Ailland. D.P.L.G., que teve notoriedade em meados do século passado, por obras, ditos e maneira de ser, quando cresciam torres por todos os arredores de Paris, costumava dizer que o que o chocava era o facto daquele tipo de edifício colocar o obsceno do quotidiano perante todos e acrescentava, colorindo o pensamento: "toda a gente pode dizer, lá vai o Dupont à casa de banho ou o casal Dupond está zangado porque ele está sozinho na sala e ela tem a luz acesa no quarto…". Milhares de janelas indiscretas.
    Se o prédio de rendimento que querem construir entre o miradouro de Santa Catarina e a margem do rio Tejo, em Lisboa, vier a concretizar-se (longe vá o agouro!) quem do jardim onde está a estátua do furibundo Adamastor tentar ver 180º de paisagem terá diante de si à altura dos seus olhos, empilhados por andares, dezenas de quotidianos que, mesmo que sejam charmosos, porque aquilo é para gente fina, não deixam de ser obscenos (no verdadeiro sentido da palavra, o que está fora de cena e não é para ser visto).
    Verdade seja dita que não haverá roupa estendida às janelas que isso é hábito de gente pobre que nunca lá poria os pés.
    A segunda, uma questão de verdade. Nada é mais enganador e distante da realidade que uma atraente maqueta, duzentas ou quinhentas vezes mais pequena que a realidade ("small is beautifull"), os pormenores desaparecem, as superfícies são todas lisas e brilhantes, um único material constrói tudo, não há manchas nem improvisos. Um prédio, e sobretudo um prédio destinado a habitação ou escritórios, é atingido sempre por um envelhecimento precoce e acelerado resultante da heterogeneidade dos materiais empregues e do próprio uso. Cada um manda em sua casa ou no seu local de trabalho e a sua vontade transparece para a rua que é de todos.
    Em Lisboa, no Saldanha, que é praça concorrida, num edifício recente e badalado, a fachada mostra, sem rebuço, as entranhas de escritórios desarrumados, cada qual iluminado e mobilado à sua maneira. É desgostante. Coisa semelhante ocorre em algumas das grandes janelas do rés-do-chão da Casa da Música, no Porto.
    E num prédio de habitação se houver varandas, as que já estão envidraçadas e as que virão a ser envidraçadas, mais as plantas, o mobiliário, os toldos e as cortinas, cada qual ao seu jeito, transformam frequentemente todo o edifício num bairro de lata, ao alto. Com o beneplácito da Câmara.
    O prédio de rendimento que pretendem construir, entre um miradouro e a margem do rio substituirá o "ver navios no Alto de Santa Catarina" que representa a nostalgia dos que quereriam partir, por uma vista, em primeiro plano, sobre um subúrbio de luxo, na vertical, mesmo que hábil publicidade o afirme "signé" e faça crer o contrário.
    Um edifício a ser singular e marcante, como se pretende que este seja, deverá garantir qualidade no funcionamento e na resistência ao tempo e não ser impositivo no seu novo-riquismo, mesmo que seja "high-teck" e brilhante.
    O monumento ao Infante D. Henrique e aos descobridores que vem da Exposição do Mundo Português compete em volume e altura com a Torre de Belém, mas é um monumento durável e respeita-a; a Torre de Controle do Porto de Lisboa confronta-se pelo desenho, a cor e os equipamentos mas é um equipamento cuja necessidade não se põe em dúvida; o Centro Cultural de Belém mimetiza-se nos materiais e na cor com os Jerónimos, mas afirma contemporaneidade no desenho e complementa-os.
    Nenhum é um prédio de rendimento, arrogante e mal colocado. Nenhum é um "edifício Coutinho".
    A terceira, uma questão de moral. Os proxenetas do urbanismo tomam por conta o corpo da nossa cidade. Compram-no, vendem-no, maltratam-no e ganham dinheiro com ele. Por vezes, mandam vir do estrangeiro grandes costureiros da arquitectura que o ataviam e o fazem vender mais caro. Escolhem para se exibir as melhores esquinas da cidade, as mais espectaculares vistas e, se for preciso, desrespeitam planos e calam condicionantes perante o deslumbre que o vedetismo exerce sobre os indígenas. Os promotores lucram e os políticos ganham votos.
    E com isso antecedem-se aos que à sua volta também quereriam torres nos seus terrenos e se todos tivessem torres nos seus terrenos a cidade incharia como a rã da fábula e estouraria. Já faltou mais.
    Uma advertência: a palavra proxeneta segundo o Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado vem do grego e significa "o que intervém num negócio", ganhou na língua portuguesa um significado mais específico que aqui não se descarta.
    A quarta, uma questão de cultura. As cidades são uma invenção do Homem e floresceram no Mediterrâneo. Os portugueses foram os primeiros a levar a invenção para o hemisfério sul. Foram hábeis em fazer e fazer viver as cidades: perceberam os sítios, entenderam os costumes e construíram em concordância.
    Basta olhar para Lisboa: edifícios baixos ligados ao rio e à faina, baixos mesmo quando albergam o poder no Terreiro do Paço, volumes desmultiplicados a atapetar as colinas, os cumes marcados por construções singulares a desenharem delicados perfis. Até o Centro Cultural de Belém, moderno, por ser ribeirinho é baixo e discreto, até as Amoreiras, post-modernas, se assumem em coerência com o cimo que ocupam, pena é que por tantas torres terem sido construídas à sua volta elas tenham perdido o seu faustoso protagonismo.
    Esta característica de Lisboa e a claridade que aporta à cidade e as vistas que consente da cidade para o rio e do rio para a cidade é sentida por todos, desenvolve sentimentos de posse e é, portanto, patrimonial.
    A quinta, uma questão de história recente. Os movimentos da população dinamizados para conservar e desenvolver esse sentimento evidenciaram-se em meados dos anos 80 com episódios das então chamadas Torres do Tejo que iam amesquinhar os Jerónimos e foram banidas, mas recentemente as três torres de Alcântara foram escorraçadas pela população, assim como na margem Sul a Manhatan de Cacilhas se tranquilizou e o elevador de S. Jorge contrário a estes princípios foi, com humildade democrática, retirado.
    Que razões haverá, pois, para que tudo isto seja contrariado e se venha a construir um prédio de rendimento, com dezenas de andares entre o miradouro de Santa Catarina e o aterro da Boa Vista, na margem do rio Tejo, em Lisboa?
    "… money, money… money!"

    Jornal da Voz do Operário
    Escrito por Francisco da Silva Dias
    Sexta, 21 Setembro 2007

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    sábado, 22 de setembro de 2007

    A memória da Comuna

    Passaram quarenta anos desde a proclamação da Comuna de Paris. Segundo um costume estabelecido, o proletariado francês honrou com comícios e manifestações a memória dos militantes da revolução de 18 de março de 1871; e em fins de maio de novo deporá flores nos túmulos dos communards fuzilados, vítimas da horrível “semana de Maio”, e sobre os seus túmulos de novo jurará lutar sem tréguas até ao completo triunfo das suas idéias, até a completa vitória, da causa por eles legada.
    Mas porque é que o proletariado, não apenas francês mas de todo o mundo, honra nos militantes da Comuna de Paris os seus precursores? E em que é que consiste a herança da Comuna? A Comuna surgiu espontaneamente, ninguém a preparou consciente e organizadamente. A guerra mal sucedida com a Alemanha, os sofrimentos durante o cerco, o desemprego entre o proletariado e a ruína entre a pequena burguesia; a indignação da massa contra as classes superiores e contra as autoridades, que manifestaram uma completa incapacidade, uma efervescência confusa no seio da classe operária, descontente com a sua situação e que aspirava a outro regime social; a composição reacionária da Assembléia Nacional, que fazia recear pelo destino da república - tudo isso e muito mais, se conjugou para impelir a população de Paris para a revolução de 18 de Março, que colocou inesperadamente o poder nas mãos da guarda nacional, nas mãos da classe operária e da pequena burguesia que se colocou ao seu lado.
    Foi um acontecimento sem precedentes na história. Até então o poder encontrava-se normalmente nas mesmas mãos dos latifundiários e dos capitalistas, isto é, de homens da sua confiança que constituíam o chamado governo. Mas depois da revolução de 18 de Março, quando o governo do senhor Thiers fugiu de Paris com as suas tropas, a sua polícia e os seus funcionários, o povo tornou-se senhor da situação e o poder passou para o proletariado. Mas na sociedade atual o proletariado, economicamente escravizado pelo capital, não pode dominar politicamente se não quebrar as suas cadeias que o prendem ao capital. E é por essa razão que o movimento da Comuna tinha inevitavelmente de adquirir uma cor socialista, isto é, de começar a visar o derrubamento do domínio da burguesia, do domínio do capital, a destruição das próprias bases do regime social atual.
    A princípio este movimento foi extremamente heterogêneo e indefinido. A ele aderiram também patriotas que esperavam que a Comuna reiniciasse a guerra contra os alemães e a levaria a bom termo. Apoiavam-no também os pequenos comerciantes, ameaçados pela ruína se não fosse adiado o pagamento das letras e das rendas (o governo não queria conceder-lhe este adiamento, mas a Comuna concedeu-o). Por último, nos primeiros tempos simpatizaram com ela mesma os republicanos burgueses, receosos de que Assembléia Nacional reacionária (os “rurais”, os latifundiários selvagens) restaurasse a monarquia. Mas o principal papel neste movimento foi naturalmente desempenhado pelos operários (principalmente pelos artesãos parisienses), entre os quais havia sido desenvolvida uma intensa propaganda socialista durante os anos do segundo império e muitos dos quais pertenciam mesmo a Internacional2.
    Só os operários se mantiveram até ao fim fiéis à Comuna. Os republicamos burgueses e os pequenos burgueses em breve se afastaram dela: uns assustados pelo caráter proletário, socialista e revolucionário do movimento; os outros se afastaram deste quando viram que ele estava condenado a uma derrota inevitável. Só os proletários franceses apoiaram sem receio e infatigavelmente o seu governo, só eles combateram e morreram por ele, isto é, pela causa da libertação da classe operária, por um futuro melhor para todos os trabalhadores.
    Abandonada pelos aliados da véspera e sem o apoio de ninguém, a Comuna tinha inevitavelmente de ser derrotada. Toda a burguesia da França, todos os latifundiários, os bolsistas, os industriais, todos os ladrões grandes e pequenos, todos os exploradores se uniram contra ela. Essa coligação burguesa, apoiada por Bismarck (que libertou 100 000 soldados prisioneiros franceses para subjugarem a Paris revolucionária), conseguiu virar os camponeses ignorantes e a pequena burguesia provinciana contra o proletariado parisiense e cercar metade de Paris com um círculo de ferro (a outra metade estava assediada pelo exército alemão). Em algumas grandes cidades da França (Marselha, Lyon, Saint-Etiene, Dijon e outras) os operários fizeram igualmente tentativas de tomar o poder, proclamar a Comuna e ir a socorro de Paris, mas essas tentativas terminaram rapidamente por um malogro. E Paris, que foi a primeira a erguer a bandeira da insurreição proletária, ficou entregue às suas próprias forças e condenada a uma morte certa.
    Para uma revolução social triunfante é necessária a existência de, pelo menos, duas condições: um elevado desenvolvimento das forças produtivas e um proletariado preparado. Mas em 1871 faltavam estas duas condições. O capitalismo francês era ainda pouco desenvolvido e a França era então principalmente um país de pequena burguesia (artesão, camponês, lojistas, etc.). Por outro lado, não existia um partido operário, a classe operária não tinha preparação nem longo treino e na sua massa ainda não tinha sequer uma idéia perfeitamente clara das suas tarefas e dos meios da sua realização. Não havia nenhuma organização política séria do proletariado nem grandes sindicatos ou associações cooperativas...
    Mas o principal que faltou à Comuna foi o tempo, a liberdade de se orientar e lançar a realização do seu programa. Ela não tivera ainda a possibilidade de meter mãos à obra quando o governo sediado em Versalhes, apoiado por toda a burguesia, iniciou as ações militares contra Paris. E a Comuna teve antes de mais nada que pensar na sua própria defesa. E até ao fim, que teve lugar em 21-28 de Maio, ela não teve tempo para pensar seriamente em mais nada.
    Mas, apesar de condições tão desfavoráveis, apesar da brevidade da sua existência, a Comuna conseguiu tomar algumas medidas que caracteriza suficientemente o seu verdadeiro sentido e objetivos. A Comuna substituiu o exército permanente, este instrumento cego nas mãos da classe dominante, pelo armamento geral do povo; ela proclamou a separação da Igreja do Estado, suprimiu o orçamento dos cultos (isto é, a manutenção dos padres pelo Estado), deu à instrução política um caráter puramente laico e desse modo desferiu um sério golpe aos gendarmes de sotaina. No domínio puramente social ela teve tempo para fazer pouco, mas este pouco revela no entanto com bastante clareza o seu caráter como governo popular, operário: foi proibido o trabalho noturno nas padarias; foi abolido o sistema de multas, este roubo legalizado dos operários; enfim, foi promulgado o famoso decreto em virtude do qual todas as fábricas e oficinas abandonadas ou paralisadas pelos seus proprietários eram entregues a associações operárias para retomar a produção. E como que para sublinhar o seu caráter de governo verdadeiramente democrático, proletário, a Comuna decretou que o vencimento de todos os funcionários da administração e do governo não deviam ultrapassar o salário normal de um operário e em nenhum caso ser superior a 600 francos (menos de 200 rublos por mês) por ano.
    Todas estas medidas mostravam com bastante clareza que a Comuna constituía um perigo mortal para o velho mundo, assente na escravização e na exploração. Por isso a sociedade burguesa não pôde dormir tranqüilamente enquanto no edifício do município de Paris flutuou a bandeira vermelha do proletariado. E quando por fim a força governamental organizada conseguiu vencer a força mal organizada da revolução, os generais bonapartistas, batidos pelos alemães e valentes contra os seus compatriotas vencidos, esses Rennenkampf e Meller-Zakomelski franceses organizaram uma carnificina como Paris nunca vira. Cerca de 30 000 parisienses foram mortos pela soldadesca selvática, cerca de 45 000 foram presos e muitos deles posteriormente executados, milhares foram enviados para os trabalhos forçados e para o degredo. No total, Paris perdeu cerca de 100 000 dos seus filhos, entre os quais os melhores operários de todas as profissões.
    A burguesia estava contente. “Agora acabou-se o socialismo por muito tempo!” – dizia o seu chefe, o anão sanguinário Thiers, depois do banho de sangue que com os seus generais acabava de dar ao proletariado parisiense. Mas esses corvos burgueses crocitavam em vão. Uns seis anos depois do esmagamento da Comuna, quando muitos dos seus combatentes ainda penavam nos trabalhos forçados e na deportação, já se iniciava em França um novo movimento operário. A nova geração socialista, enriquecida com a experiência dos seus predecessores, mas de modo nenhum desencorajada pela sua derrota, empunhou a bandeira caída das mãos dos combatentes da Comuna e levou-a em frente, confiante e corajosamente, aos gritos de “viva a revolução social! Viva a Comuna!”. E ainda alguns anos mais tarde o novo partido operário e a agitação por ele desencadeada no país forçou as classes dominantes a por em liberdade os communards presos que ainda estavam na mão do governo.
    A memória dos combatentes da Comuna é honrada não apenas pelos operários franceses, mas também pelo proletariado de todo o mundo. Porque a Comuna lutou não por qualquer tarefa local ou estreitamente nacional mas pela libertação de toda a humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e ofendidos. Como combatente de vanguarda pela revolução social, a Comuna conquistou simpatias por toda a parte onde o proletariado sofre e luta. O quadro da sua vida e da sua morte, a imagem do governo operário que tomou e conservou em suas mãos durante mais de dois meses a capital do mundo, o espetáculo da luta heróica do proletariado e dos seus sofrimentos depois da derrota, tudo isto elevou o espírito de milhões de operários, despertou as suas esperanças e suscitou a sua simpatia pelo socialismo. O troar dos canhões de Paris despertou do seu sono profundo as camadas mais atrasadas do proletariado e deu por toda a parte um impulso à intensificação da propaganda revolucionária socialista. É por isso que a causa da Comuna não morreu; ela continua a viver em cada um de nós.
    A causa da Comuna é a causa da revolução social, a causa da total emancipação política e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado mundial. E neste sentido ela é imortal.
    1 Comuna de Paris: Primeira experiência histórica de criação da ditadura do proletariado. O governo revolucionário da classe operária constituído em Paris como resultado da insurreição de 1871 durou 72 dias – de 18 de março a 28 de maio. A Comuna de Paris, que era um órgão legislativo e executivo, separou a igreja do Estado e a escola da igreja, aplicou uma série de medidas para a melhoria da situação econômica dos operários e das camadas pobres da cidade, etc.
    Contudo, o receio de nacionalizar o banco da França, a indecisão na liquidação das forças contra-revolucionárias de Paris, a tática da defesa passiva e a subestimação da importância da aliança com o campesinato apressaram a queda da comuna de Paris.
    Em 21 de Maio de 1871, as tropas do governo contra-revolucionário de Thiers lançaram uma cruel repressão sobre os operários de Paris. Os comnnunards combateram nas barricadas até 28 de Maio.
    2 Trata-se da I Internacional (Associação Internacional dos Trabalhadores), primeira organização internacional de massas do proletariado, fundada em 28 de setembro de 1864. A criação da I Internacional foi o resultado de uma persistente luta de muitos anos de K. Marx e F. Engels pelo Partido Revolucionário da Classe Operária.
    A I Internacional dirigiu a luta econômica e política dos operários de diferentes países e reforçou a sua solidariedade internacional. Foi enorme o papel da I Internacional na difusão do Marxismo e na união do socialismo com o movimento operário.
    (Publicado na Rabótchaia Gazeta nº. 4-5, de 15 (28) de Abril de 1911. Obras Completas de V. I. Lenine, 5ª ed. em russo, t. 20, pp. 217-222).
    V.I. Lênin

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    Ode a Neruda

    Pablo Neruda:
    Poetas do povo chileno,
    Poetas dos povos latino-americanos,
    Poetas dos povos do mundo.
    (Pablo Pavel)


    O conceito de ode nos dicionários é: uma composição em verso que se destina a ser cantada. Nada mais justo que cantar os mais belos versos à memória de um dos maiores poetas do mundo, Pablo Neruda.

    Neftalí Ricardo Reyes nasceu em Parral, no Chile, em 12 de julho de 1904. O nome Pablo Neruda, que adotara como escritor, aos 16 anos, principalmente para enganar seu pai, tornou-se seu nome oficial em 1946.
    A partir de 1921, publica seus primeiros trabalhos no Chile, caracterizando-se como um grande poeta do amor, destacando, em 1924, Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada e, anos depois, em 1959, Cem Sonetos de Amor.
    Sua militância ativa no país, principalmente no Partido Comunista, trouxe uma forte influência para sua poesia, que se tornou a maior característica do poeta, a poesia política. Das várias viagens como cônsul do Chile, uma das mais importantes foi a que sucedeu sua nomeação como cônsul na Espanha, primeiro em Barcelona, depois em Madri, em 1935. Durante a Guerra Civil Espanhola, escreve “Espanha no Coração”, obra que se tornou um instrumento de luta e estímulo do povo espanhol contra a ditadura de Francisco Franco. Como mesmo citou na sua autobiografia “Confesso Que Vivi”, Pablo Neruda relata que a primeira edição de seu livro foi rodada com restos de papéis e roupas de soldados mortos na guerra civil, e que muitos soldados abandonaram seus mantimentos para carregar sacos cheios de seus versos, salvando a obra das mãos da ditadura e garantindo que chegasse às mãos de todos os soldados do povo.
    Generais / traidores: / olhai a minha casa morta / olhai a Espanha rota / mas de cada casa morta sai metal ardendo / em vez de flores / mas de cada buraco da Espanha / sai Espanha. (...) Perguntareis por que a sua poesia / não nos fala do sonho, das folhas / dos grandes vulcões do seu país natal? / Vinde ver o sangue pelas ruas / vinde ver / o sangue pelas ruas / vinde ver o sangue / pelas ruas! (Pablo Neruda, Espanha no Coração).
    Com a impossibilidade de entrar no Chile devido à ilegalidade do Partido Comunista em 1945, Neruda termina Canto Geral, uma das mais belas e famosas obras do poeta, publicada em 1950, considerada até hoje a canção da América. Quatro anos depois, publica As Uvas e o Vento, sendo este a canção da Ásia e da Europa. Antes disso, em 1953, ele recebe o Prêmio Stálin da Paz, na União Soviética.
    Além de membro do Partido Comunista Chileno, foi senador entre 1945 e 1948. Os grandes comícios, onde eram declamados seus versos, e a luta, depois de eleito, visitando, dormindo e conhecendo as casas dos trabalhadores das regiões mais pobres do país, trouxeram-lhe a certeza de sua importância como poeta do povo e como político na luta pelo socialismo.
    Em 21 de outubro de 1971, recebe o Prêmio Nobel de Literatura, apesar de que, durante anos, a CIA tentou de todas as formas impedir isso. (A Verdade nº. 4).
    Em 1973, Neruda se encontra gravemente doente de um câncer de próstata, que é bastante agravado com o golpe militar no Chile, em 11 de setembro, comandado pelo ditador Augusto Pinochet. No seu livro Minha Vida Junto a Pablo Neruda, Matilde Urrutia, esposa do poeta, declara que suas últimas palavras, ditas em um sussurro, foram: “Los fusilan! Los fusilan a todos! Los están fusilando!”. O poeta morre a 23 de setembro desse ano.
    Pablo Neruda não foi simplesmente um grande poeta. Ele soube compreender a importância da arte voltada para a defesa do povo, a arte como produção de sua vida de poeta da classe dos oprimidos e explorados. Foi o poeta que vivia conforme ensinavam seus versos.

    Tiago Medeiros


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    quinta-feira, 20 de setembro de 2007

    A falsa democracia norte-americana

    A democracia norte-americana, pregada pelos EUA como modelo de política e liberdade para o mundo, é na verdade uma falsa democracia. Descobrimos este fato pelo estudo do desenvolvimento econômico norte-americano através do tempo.
    No século XVII, capitalistas e aristocratas ingleses invadiram e ocuparam a América do Norte para explorá-la lucrativamente. Expulsaram os índios do litoral e nele organizaram várias colônias. Nas colônias do norte e do centro, onde havia clima favorável, os ingleses instalaram a produção mercantilista baseada no trabalho artesanal e no assalariado, financiada pelo capital bancário da metrópole. Nas colônias do sul, o clima quente e tropical favorecia apenas a agricultura de plantation. Então, os ingleses instalaram a produção agrícola exportadora baseada na mão-de-obra escrava.
    A colonização baseada na propriedade privada dos meios de produção desenvolveu uma sociedade colonial dividida em quatro classes. Duas delas ricas e privilegiadas: a aristocracia agrária, formada pelos senhores de escravos das colônias do sul, e a burguesia mercantilista formada pelos banqueiros, armadores, donos de manufaturas, comerciantes e burocratas do norte e do centro. As duas outras classes eram pobres e exploradas. Eram elas: a dos trabalhadores livres, formada por assalariados, artesãos e pequenos agricultores, e a dos escravos, composta de africanos cativos. A aristocracia enriqueceu explorando os escravos e a burguesia enriqueceu explorando os trabalhadores livres. Tudo era feito em sociedade econômica e política com as altas classes da metrópole (Pacto Colonial).
    Mais tarde, em 1776, a crise financeira e a industrialização da Inglaterra causaram a separação dos negócios. Os sócios ingleses mudaram arbitrariamente as regras do Pacto Colonial para obrigar as colônias a financiar as dívidas da guerra com a França e para viabilizar o seu novo negócio, a indústria. Criaram pesados impostos sobre pessoas e mercadorias e também monopólios que impediam a liberdade de comércio. Prejudicados em seus negócios, os sócios coloniais (aristocratas e burgueses) desfizeram a sociedade com a Inglaterra, proclamando a independência. Os sócios ingleses responderam com as armas.
    Na verdade, a independência dos EUA não foi um movimento democrático popular, mas sim a luta da minoria de ricos colonos pela sua própria riqueza e pela liberdade econômica. As massas trabalhadoras, maioria da população colonial, continuaram dependentes ou escravizadas, pobres e excluídas das decisões políticas. As evidências deste fato são apresentadas em História da Riqueza do EUA, de Leo Huberman, que explica como os congressos que decidiram fazer a independência, a guerra para expulsar os ingleses e os empréstimos para financiar tudo, eram formados por delegados da burguesia e da aristocracia coloniais eleitos pelo voto censitário masculino (direito de votar e ser votado apenas para homens com boa renda anual). Colonos de baixa renda, mulheres e escravos foram excluídos.
    A república aristocrático-burguesa
    A formação do Estado Nacional norte-americano seguiu o mesmo processo antidemocrático. Cada colônia foi transformada em estado soberano por congressos locais eleitos e unidos pelas classes ricas. Do mesmo modo, foram eleitos os representantes dos 13 estados e reunidos em um congresso aristocrático-burguês, o Congresso de Filadélfia, que em 1777 criou os Estados Unidos da América: uma confederação de 13 estados soberanos representada pelo congresso unicameral.
    Depois de expulsar os ingleses, as classes ricas passaram a ter sérios problemas. As dívidas da guerra da independência causaram grave crise financeira. O excesso de autonomia política, econômica e monetária produziu uma crise econômica generalizada. Huberman explica que os agiotas aproveitaram-se da situação e a miséria do povo americano cresceu.
    Arruinados pelas crises e pelos agiotas, os trabalhadores e os pequenos proprietários fizeram levantes armados em vários estados. Um desses levantes, o de Shays (1786), no Estado de Massachusetts, foi particularmente perigoso porque defendeu a idéia da propriedade comum. Alarmadas, as altas classes tentaram controlar a situação, mas a precária confederação mostrou-se incapaz. Então os ricos passaram a clamar por um novo tipo de estado.
    Em 1787, reuniu-se uma convenção para organizar o novo estado. Huberman denuncia que os 55 delegados dessa convenção eram banqueiros, acionistas, comerciantes, fabricantes e senhores de escravos reunidos em segredo e a portas fechadas.
    As divergências entre os dois modos de produção dominaram os trabalhos. A burguesia era contra a soberania dos estados porque esta travava a livre circulação de mercadorias, impedindo o funcionamento dos seus negócios. Seu objetivo era acabar com qualquer barreira à livre circulação das mercadorias e integrar os estados para organizar o comércio interno. Por isso os burgueses defendiam a formação de uma federação, que é um tipo de estado formado pela união de estados com limitada autonomia em torno de um poder central, forte, centralizado e soberano. Segundo Delgado de Carvalho, em sua História Geral, essa burguesia organizava-se no Partido Federalista (Partido Republicano de hoje). Eram liderados pelo rico advogado Alexandre Hamilton e pelo general George Washington. Seguiram o liberalismo inglês.
    A aristocracia agrária não queria a diminuição da autonomia estadual porque perderia o controle político e econômico dos estados do Sul, essencial para manter seus negócios. Sua produção agroexportadora escravista e dependente dos mercados externos dava altos lucros. Exportava algodão e tabaco e importava produtos industrializados ou manufaturados da Europa e escravos das Antilhas. Não precisava de comércio interno nem de integração econômica. Por esse motivo defendia a formação de uma república onde os estados tivessem ampla autonomia. De acordo com Delgado de Carvalho, os aristocratas organizavam-se no Partido Republicano-Democrático (Partido Democrata de hoje), sob a liderança de Thomas Jefferson, seguindo ao mesmo tempo o liberalismo francês e a fisiocracia.
    O resultado da luta política entre aristocratas e burgueses foi uma constituição de artigos que atendeu aos interesses comuns das duas classes, os quais eram: 1 – A propriedade privada; 2 – a liberdade individual formal; 3 – a liberdade econômica (liberalismo); 4 – moeda única para todos os estados; 5 – um exército permanente para esmagar os levantes das massas trabalhadoras e rebeliões dos escravos, lutar contra nações concorrentes, guardar as fronteiras (terras de especuladoras) e guardar a propriedade privada; e uma Marinha de guerra para auxiliar o Exército e proteger o comércio marítimo. Interesses divergentes, como o tipo de estado, tiveram de ser conciliados. Foi adotada a República Federativa para atender à burguesia, e a República para atender aos aristocratas.
    O mesmo aconteceu com a organização econômica. Foram estabelecidos os estados livres, em que a base da economia era o trabalho artesanal ou assalariado, e os estados escravistas (no sul), onde a base da economia era o trabalho escravo.
    Segundo estudos de Huberman, para que as pessoas com pouca ou nenhuma propriedade tivessem pouco poder, burgueses e aristocratas estabeleceram o seguinte esquema: primeiro dividiram o governo em três partes – uma parte legislativa, formada pelo Congresso dos Estados Unidos, dividido em duas câmaras, Senado e Câmara dos Representantes Estaduais; uma parte executiva, formada pela Presidência dos Estados Unidos; e uma parte judiciária, formada pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
    Depois, estabeleceram que o povo elege diretamente apenas a Câmara dos Representantes Estaduais. Cabe aos representantes estaduais eleger os senadores e escolher os eleitores do Colégio Eleitoral. O Colégio Eleitoral elege o presidente dos Estados Unidos, que tem mandato de quatro anos. O presidente escolhe os membros da Suprema Corte, que têm mandato vitalício. A Constituição dos Estados Unidos da América entrou em vigor nacionalmente em 1788, após tumultuada notificação dos 13 estados. Ela é um dos maiores exemplos de falsificação da democracia e da liberdade.
    Para coroar sua vitória sobre as ameaças à propriedade privada e aos seus negócios, em 1789 as classes ricas unem-se para eleger George Washington (Partido Federalista) o primeiro presidente. Quase meio século depois, o abolicionista William Lloyd Garrison propôs que a Constituição dos EUA fosse queimada porque, segundo ele, ela perpetuava a escravidão.
    Os senhores do dinheiro contra os senhores dos escravos
    A luta de classes logo transformou a república aristocrático-burguesa dos EUA em cavalo de batalha das classes proprietárias. A burguesia do Norte tirava a sua riqueza do modo de produção capitalista de mercadorias. Mas essa liberdade era travada pelo modo de produção do Sul, baseado no trabalho escravo e na terra. Então, as duas classes passaram a usar o Estado para lutar uma contra a outra, prejudicando o povo.
    O primeiro governo de Washington foi tumultuado pela rivalidade entre o secretário de Estado, Thomas Jefferson (Partido Republicano-Democrático), que usava o cargo para os negócios de agroexportação dos aristocratas, e o secretário do Tesouro, Alexander Hamilton (Partido Federalista), que usava o cargo para os negócios da burguesia. Esse tipo de política arruinou a maioria do povo, que se revoltou, mas foi rapidamente derrotado.
    Nos anos seguintes, o Partido Aristocrático usou o Estado para comprar os territórios da Luisiânia e da Flórida, para onde expandiram a produção agroexportadora escravista. A burguesia respondeu com a expansão dos seus negócios para o Oeste, usando a mão-de-obra barata do proletariado das cidades do norte, invadindo e incentivando a invasão das terras dos índios por garimpeiros, caçadores de peles e agricultores arruinados. Depois, sobre as terras roubadas, construíram estradas de ferro ligando o Oeste ao Norte para fazer circular as mercadorias. Por volta de 1850, já não havia terras para onde expandir, o que agravou o conflito. Reorganizados desde 1836 no Partido Democrata, os aristocratas dividiram o controle do Estado com os burgueses até 1860, quando o novo partido burguês, o Republicano, elegeu Abraham Lincoln e implantou o programa burguês de integração econômica. Aprovou taxas que beneficiavam os negócios da burguesia e prejudicavam a produção agrária e iniciou o projeto de libertação dos escravos.
    Em minoria, os aristocratas responderam com um golpe. Separaram os estados sulistas dos EUA e com eles formaram seu próprio estado (os Estados Confederados da América), para manter a produção escravista. O resultado foi a explosão de uma guerra civil. A burguesia mobilizou os estados do norte e do oeste (a União), os abolicionistas e o proletariado para destruir a Confederação. Durante cinco anos, os confederados lutaram encarniçadamente, porém como eram dependentes da importação de armas e munições foram bloqueados pela Marinha de Guerra construída pelos estaleiros burgueses e destruídos pelas armas fabricadas pela indústria burguesa.
    A vitória do capitalismo industrial na Guerra Civil Americana destronou a aristocracia sulista e transformou os EUA numa república burguesa. Tal vitória custou ao povo americano 617 mil mortos, 8 bilhões de dólares em despesas de guerra, destruição da economia do Sul e milhares de desempregados e desabrigados (principalmente escravos “libertados”).
    Onde está a democracia dos EUA?
    Segundo os estudos de Lênin para o livro Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, a economia norte-americana desenvolveu monopólios que são minorias de grandes empresas organizadas em trustes e cartéis para controlaram sozinhas toda a matéria-prima e para impor suas mercadorias e seus preços. Os donos dos monopólios são um pequeníssimo número de burgueses.
    A tirania econômica monopolista desenvolveu a tirania política imperialista. Os donos dos monopólios norte-americanos organizam-se em partidos burgueses, como o Republicano, para controlarem o Estado. Com isso, passam a dominar a economia e a nação para sugar suas riquezas. Depois, usam o estado para dominar outras nações e extrair matérias-primas e demais riquezas. Para isso, endividam essas nações, compram seus políticos e seus governos fantoches.
    De 1870 a 1980, os EUA derrubaram dezenas de governos eleitos e instalaram ditaduras em todos os países das Américas do Sul e Central. Onde houve resistência ou concorrentes imperialistas, os EUA fizeram guerras devastadoras como a II Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã.
    Internamente, a política dos EUA passou a ser monopolizada pelos partidos da minoria rica, o Partido Republicano (burguesia proprietária dos monopólios) e o Partido Democrata (restante da burguesia e pequena-burguesia). A participação do povo continua resumida à eleição dos representantes estaduais, mesmo depois de ter conquistado com muita luta o direito de votar e ser votado através do voto universal.
    As análises da ciência econômica marxista demonstram que não existe democracia em sociedades baseadas na propriedade privada dos meios de produção. Neste tipo de sociedade, uma minoria de ricos proprietários explora e domina a maioria do povo (trabalhadores). Nesse esquema, a democracia é apenas um slogan usado pela minoria rica para atingir seus objetivos.

    Paulo Marcelo Rodrigues

  • A Verdade
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    quarta-feira, 19 de setembro de 2007

    A sociedade da desinformação

    Uma pergunta que os meus leitores fazem muitas vezes é porque os media ditos "de referência" estão a fazer um trabalho tão mau quanto ao relacionamento entre a emergência energética global e as perturbações nas finanças globais. Mantenho a minha "alergia" a teorias da conspiração. Não existem quadrilhas de figurões da Wall Street conluiadas com tipos de fato cinzento da CIA para intimidar editores com instrumentos de tortura. A cultura americana já se tornou auto-desinformativa.

    Como disse muito bem o meu amigo Peter Golden (blog Boardside ): "Quando as pessoas mentem, elas sabem que estão a fazer algo errado. Mas quando elas apenas fantasiam, não funciona a consciência do certo ou do errado. Parece moralmente certo viver num mundo de fantasia – e isto é muito mais pernicioso para o discurso público do que a mentira".

    Meus amigos, que em grande parte são ex-hippies, yuppies progressistas, durante seis anos ativeram-se a preces para exorcizar o mau espírito de George W. Bush, mas deixaram de reconhecer um fracasso de liderança mais abrangente em todos os sectores da vida americana e especialmente naqueles onde actua um bocado de ex-hippies-agora-yuppies. A nossa liderança política pode ser deplorável, mas também a nossa liderança nos negócios, na educação, nas artes e especialmente nos media.

    A demonstração disto é The New York Times. Nas suas reportagens acerca da situação petrolífera mundial eles engoliram totalmente e acriticamente as notas de relações públicas de Daniel Yergin, do Cambridge Energy Research Group (CERA), um estabelecimento de RP ao serviço da indústria petrolífera. A preguiça [na investigação jornalística] não chega para explicar isto. É má liderança editorial. É um fracasso na formulação das perguntas importantes.

    Na sexta-feira os mercados futuros de petróleo fecharam a um dólar de distância de todos os récords de preços elevados (no mesmo dia em que o Índice Industrial Dow Jones caiu 250 pontos). Contudo, a principal manchete de hoje (segunda-feira) na Secção de Negócios do NY Times é "Disney testa a natureza dos brinquedos à procura de tinta com chumbo". Bem, espero que consigamos corrigir isto de modo a que a civilização possa continuar com uma oferta completa de bonecos da Disney debaixo das árvores de Natal – e esqueça por um momento se a Avó será capaz de conduzir até o WalMart em Dezembro, ou se o WalMart será capaz de manter cheios os reservatórios de diesel dos seus camiões, ou se tanto a Avó como o administrador assistente do seu WalMart local estão com atrasos de três meses nos pagamentos das suas hipotecas reajustadas, e já atingiram os limites máximos dos seus cartões de crédito...

    Para mim, parece haver uma óbvia correlação entre os fracassos actuais dos mercados financeiros – em particular o sector do crédito – e o fracasso brutal de liderança em toda a administração da vida americana. No final das contas, o crédito depende da legitimidade, e o mesmo se passa com a autoridade. Eles estão ligados em conjunto. Durante anos, ambos estiveram imersos na fantasia ao invés da realidade.

    De outra forma, como pode alguém justificar o espantoso desaparecimento dos padrões no empréstimo entre seres humanos, sob o comando de instituições bancárias? Todos os executivos bancários não acordaram uma certa manhã com uma falta de 60 pontos nos seus QI. E nem tão pouco se pode dizer que todos eles acordaram uma manhã com as más intenções de trabalharem com perversidade. Eles simplesmente foram subsumidos numa fantasia: de que não havia diferença material entre tomadores de empréstimos com capacidade comprovada de os reembolsarem e tomadores sem qualquer possibilidade de crédito. E livraram-se dos problemas que se poderiam ter seguido através da liquidação por grosso de pacotes de bons e maus empréstimos a compradores aquiescentes (outros executivos bancários) mais abaixo da linha, os quais por sua vez venderam certificados que representavam estes pacotes a executivos em grupos de pensão e mercados de dinheiro. Isto tornou-se normal. Isto foi justificado em toda a extensão da liderança americana pelo Explicador-Chefe quando disse que era uma coisa boa que tantos americanos quanto possível possuíssem a sua própria casa.

    Será que os media americanos deram conta desta cadeia de perigosas fantasias? De modo algum. Ficaram simplesmente hipnotizados pela admirável e sobrenatural ascensão dos preços nominais das casas, e com o fantástico fluxo de cheques de pagamentos vindos dos escritórios dos construtores de casas, assim como com os fabulosos refinanciamentos que enviavam torrentes de rendimento para as lojas de móveis em saldo, com o catálogo da Williams Sonoma [1] e com os salões de cirurgia plástica.

    PICO PETROLÍFERO

    Tudo isto verifica-se contra o pano de fundo do que tem sido chamado Pico Petrolífero (Peak Oil), o ponto de viragem na produção global de petróleo e, na verdade, o mais alto ponto de todos os tempos no consumo mundial do óleo, o qual agora pode ser datado com precisão (por meio do espelho retrovisor) como tendo atingido o topo absoluto em Julho de 2006 – o momento exacto, por acaso, em que um gigantesco alfinete perfurou as moléculas externas da telenovela que mantinha a bolha imobiliária.

    A produção de petróleo (todos os líquidos, incluindo subprodutos do gás natural, areias betuminosas e tudo o mais) agora está mais baixa em mais de um milhão de barris por dia. Até aqui experimentámos isto apenas através dos abalos crescentes nos preços futuros do petróleo. Ao longo deste breve período de tempo, desde o pico absoluto, as perdas de oferta têm sido remetidas para as sociedades mais pobres do mundo, as quais simplesmente retiram-se da competição por abastecimentos de petróleo.

    O que os media "de referência" omitem neste momento é a perspectiva de uma pioria realmente rápida do problema quando as exportações dos países grandes produtores de petróleo caírem a uma taxa mais aguda do que a do declínio da sua produção. Esta ideia foi articulada pelo geólogo de Dallas Jeffrey Brown, em The Oil Drum.com (para uma discussão quanto a isto ir ao blog Energy Intelligence , de Jeff Vail).

    Os media "de referência" também fracassam em estabelecer a conexão entre a suprema mercadorias que permite às economias industriais do mundo operarem e a credibilidade de um sector financeiro cuja missão principal é financiar a operação de economias industriais. Na ausência de qualquer perspectiva de crescimento real na economia industrial da América, o sector financeiro inventou um sistema no qual podíamos investir na fabricação de instrumentos de investimento ao invés de investir na actividade produtiva propriamente dita. E assim toda a perícia e todo o tempo daqueles que trabalham no sector financeiro voltou-se para a produção de veículos de dívida comerciáveis baseados em fórmulas abstrusas que quase ninguém podia entender (especialmente aqueles que os compravam e os vendiam).

    Toda esta perigosa fantasia ganhou legitimidade porque durante algum tempo parecia compensar. Cidadãos comuns podiam adquirir casas muito maiores e mais bem equipadas do que os seus rendimentos justificavam. E os banqueiros e emitentes das hipotecas obtinham comissões colossais com esta actuação. E os banqueiros em posições mais elevadas na cadeia obtinham bónus nunca vistos com a alavancagem da dívida titularizada de tudo aquilo, e os políticos regozijavam-se ao calor de uma aparente hiper-prosperidade, e o professor Bob Bruegmann, da Universidade de Illinois, declarava que a dispersão suburbana é uma coisa boa, e mesmo The New York Times, se bem que desconcertado quanto a eficácia da recolha de notícias contra a Internet, era capaz de rapar de publicidade suficiente para construir uma desnecessária nova sede em Manhattan, um arranha-céu.

    Agora o sonho acabou. O azar moral com base na realidade está a retornar (literalmente) como uma vingança. O certo e o errado estão em vias de importar outra vez e um bocado de pessoas que puseram estas coisas de lado por algum tempo irão sofrer.
    10/Setembro/2007
    [1] Estabelecimento que vende artigos de cozinha.

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    domingo, 16 de setembro de 2007

    O liberalismo inconsequente de Sócrates

    Nos últimos tempos o governo português e o primeiro-ministro vêm dando sucessivos sinais de uma vocação centralista e autoritária, não só agredindo alguns dos principais valores democráticos como evidenciando uma vontade indomável de desmantelar o frágil «Estado social» que temos. Recordamo-nos bem das promessas eleitorais: era preciso salvar o Estado social; era preciso dar combate às desigualdades sociais; era preciso tornar o país competitivo, mas sem perder o sentido da solidariedade; proceder à reconversão tecnológica e dar oportunidades aos melhores, mas preservar a coesão social; etc., etc.
    As bandeiras da competitividade, da defesa da eficácia, da transparência e da flexibilidade, para além de justificadas com a necessidade de reequilíbrio das contas públicas, eram condimentadas com as referências ao socialismo «moderno» e à redução das desigualdades. Digamos que o lado «pragmático» e liberal do discurso de Sócrates procurou equilibrar-se com a suposta defesa do Estado social e da sua sustentabilidade. Passados dois anos torna-se claro que o piscar de olho à esquerda não passou afinal de mero verniz eleitoralista.
    Observando as medidas tomadas e a postura política do governo a meio da legislatura, é forçoso hoje concluir que, ao contrário do prometido, não se trata de decisões difíceis para chegar a resultados justos. Ao contrário da retórica oficial, não se trata de sacrificar interesses egoístas em benefício do bem comum. A divisão entre os sectores público e privado, alimentada e explorada pelo governo, pintando-se o primeiro como povoado de «privilegiados» e o segundo como o sacrificado perante a crise, serviu para legitimar a reestruturação em curso na administração pública. Criou-se a ideia de um excessivo peso do Estado, escondendo-se o facto do sector público português ser na verdade um dos mais «magros» da União Europeia quanto ao volume de assalariados. Com tais pretextos, ataca-se a eito o funcionalismo numa lógica de nivelamento por baixo. Além da contenção salarial e do bloqueio das carreiras, assiste-se a uma drenagem de recursos (veja-se o caso dos médicos), a um desmembramento de serviços e em muitos casos à sua crescente privatização, como se a gestão privada fosse sinónimo de boa gestão. Na saúde, na educação, nas universidades, a batuta do maestro reflecte as pautas musicais do neoliberalismo reinante. O requisito democrático do diálogo social e da negociação é deitado ao lixo, porque os sindicatos são agora considerados as novas «forças de bloqueio». A promessa de um «socialismo moderno» está a virar uma espécie de «a-socialismo» de cariz pré-moderno. Na verdade um liberalismo inconsequente nos próprios termos do seu ideário.
    As desigualdades sociais em Portugal já eram das mais acentuadas dos países da União Europeia, o diferencial entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos situava-se em 2003 num desequilíbrio de 1 para 7,4 vezes a favor dos mais ricos, e, segundo estudos internacionais, a desigualdade existente no país (na distribuição da riqueza, medida pelo índice de Gini) coloca-nos próximos de países como a Tanzânia e Moçambique. Uma situação que, somada aos 20% da população que vive no limiar de pobreza, é de facto vergonhosa. Tudo isto já se sabia antes de Sócrates, só que agora, com o poder de compra dos trabalhadores a baixar como não acontecia há mais de 20 anos, com o desemprego a aumentar e a proletarização a bater à porta da classe média, tais indicadores estarão seguramente a agravar-se cada vez mais. Entretanto, a nova casta de gestores e administradores – privados e públicos –, os bancos e grupos que comandam a economia financeira, triplicam salários e multiplicam lucros. Isso acontece à custa sobretudo dos que trabalham, ou já trabalharam durante décadas, dos que descontam mensalmente para o Estado, dos que se endividaram aos bancos para terem casa, dos que sofrem na pele o despotismo de chefes, directores e pseudo-líderes, estes sim, fiéis incondicionais da nova corte tecnocrática, cujos privilégios, reformas, bem-estar e segurança estão garantidos.
    E quanto ao país competitivo e à revolução tecnológica das empresas, não se vê nenhuma luz ao fundo do túnel. Numa sociedade como a portuguesa, ainda amarrada a um conjunto de peias, lógicas corporativas, tutelas e dependências, o factor segurança – em especial no emprego, que é a base de tudo o resto – é a chave da coesão social. E sem segurança não é possível nem reconversão profissional, nem aumento da produtividade e da capacidade competitiva, nem maior eficácia das instituições. Até porque a obsessão pelo mando, por parte das chefias, as vaidades e interesses pessoais que minam as organizações aniquilam a – já de si fraca – iniciativa individual e sentido de autonomia dos trabalhadores portugueses. Mais emprego qualificado sim, mas que permita aos melhores aceder à estabilidade e lhes dê incentivos e possibilidades de progressão. A administração pública, que até há pouco era o único sector do emprego que dava alguma segurança, está a ser desmembrada e puxada para baixo, para o mesmo padrão dos sectores privados considerados mais «competitivos», ou seja, os mais insensíveis aos direitos laborais e os mais exploradores.
    Perante tudo isto, pode perguntar-se: se tivermos mesmo de aceitar o facto consumado do fim do Estado-providência, onde está o modelo liberal alternativo? Que sinais, que exemplos de boas práticas, que espaços de oportunidade para os mais talentosos, qualificados e competentes? Se o Estado, além de emagrecer e se extinguir como factor de coesão, se demite da sua função reguladora, se passa a permitir ou incentivar o regresso à barbárie mercantilista (reduzido às ditas funções «nucleares»), como parece ser o caso, não poderão os replicantes portugueses dos Blaires ou Sarkozys admirar-se de ver de novo o «pacato» povo português nas ruas, pois estarão a estimular a que um novo «proletariado» precário, inseguro, mas cada vez mais revoltado, mostre ao governo e ao primeiro-ministro que o novo capitalismo selvagem, tal como o do século XIX, tem como contraparte uma nova questão social! Uma nova conflitualidade social e laboral, de que a greve geral de 30 Maio pode ser apenas um primeiro passo.

    por Elísio Estanque

    * Sociólogo, Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
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